Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Crônica de fim de ano


“Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus. (...) E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim?..." - Mateus 5, 43-48


(os homens sábios que li e conheci ensinaram-me o que escrevo por esta crônica)

Não se apegue demais às coisas; não traga pela vida um fardo maior que viver e amar. Separe o joio do trigo. Há coisas que fazemos para serem doadas ao tempo, à história, às pessoas; são as grandes coisas, as que deixam em nós apenas o diamante de as termos criado, mas que não têm dono. Vieram as hienas roubá-las, devorá-las, refestelar-se? Deixe que o façam, ora essa! Entenda, amigo: o que as hienas mordem vira carniça assim que sai de suas mãos para as garras delas... Mas a lembrança do que se foi, a imagem suspensa da beleza que você criou não podem ser presas da gula dos carniceiros... Sábia existência, professora infinita – amém.

Ah, deixe de remoer a náusea; perdoe os homens! Deixe as coisas velhas virarem junto desse ano velho... Seja esperto, nunca maquiavélico; seja estratégico, nunca comodista; seja justo, nunca vingativo – vingar-se é transformar-se no mal que habita a coisa vingada. Há homens maus? Saia de perto deles, livre-se, engane-os, mas não seja mau também, que o sofrimento da ruindade já é o grande castigo que a gente ruim leva por seus (longos) dias de carregar pedras.

Olhe para esse céu em estado de “révellion”: que bonito céu, que doçura a bater nas últimas horas em que nosso pequenino planeta azul gira, uma vez mais, pela cintura da estrela soberana! Deixe suas ideias girarem também! Contemple esse relógio mágico que aparece na parede do ano terminando, e sorria, e seja simples...

Que flor bonita nascerá de nossas mãos, amigos, se nos revoltarmos sem ódio, se lutarmos sem mágoa, se vencermos sem soberba, se amarmos sem egoísmo, se perdermos sem apego; que flor bonita se, feito esse tempo que desliza, aprendermos a renascer como uma luz que não cega, um fogo que não fere...

Feliz 2013, e que Deus esteja em nosso merecimento.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A teoria das coisas simples (cotidiana)


Vi uma senhora, num dia que não recordo, no centro de Recife, vendendo espetinhos. Fiquei observando, encantado, o jeito de trabalhar dela. Tudo era impecável, higiênico, honesto até os ossos. Os espetinhos, cordados exatamente do mesmo jeitinho. O refrigerantes, limpos, brilhando num isopor branco como o sorriso dela quando entregava a comida ao cliente; e era engraçado que ela mal olhava o dinheiro: ficava espiando o gesto de aprovação do comprador, e estava claro que ele gostava de dar alegria mais que de ganhar sua graninha sagrada – salve o fruto do trabalho, amém.

Que diferença haverá entre um escultor, um pedreiro, um poeta, um pintor, um músico e a senhorinha simpática que vende pequenas alegrias às pessoas? Nenhuma, se nossos olhos forem simples; e se nossos olhos forem simples, verão que a perfeição, a profundidade, a extrema religiosidade não estão apenas em pintar um teto de capela, compor uma sinfonia ou escrever um clássico. Nada disso. A obra, porque não tem carne, é uma ilusão. A fama, porque só existe nos outros, é outra ilusão. Vale só o ser humano, bicho desencontrado que teima e livrar-se da beleza; mas há desses bichos que, feito a senhorinha da barraca, quanto mais beleza atiram pelas mãos fora, mais bonitos ficam.



domingo, 14 de outubro de 2012

Crônica inútil


Às vezes penso em deixar de escrever crônicas. E não é pelo fato de as pessoas quase todas não darem a mínima às coisas do coração. Nada disso. O sentimental sempre foi e será sempre um operário da solidão. Penso em deixar de escrevê-las porque não encontro mais espaço na cidade em que haja uma razão a compor o lirismo de uma crônica brasileira, nordestina, pernambucana, recifense diante dos olhos de um alagoano que, feito um caçador de borboletas zarolho, busca asas que não há, onde asas nunca estiveram. É simples assim: a vida vai virando algo que se inflama e expulsa o cronista como se ele fosse um espinho em seu dedão. Nem argumento há que justifique esta crônica andar mais que este parágrafo. Esta crônica, talvez a última.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Saudades do chão


Tenho saudades do chão. Tenho saudades das plantas, de sua placidez familiar, das lembranças que compartilham conosco, da mútua floração, do mútuo desfolhar, do mútuo viver vendo formigas. É bom morar em apartamento porque ele nos afasta da chatice idiota da vida rasteira que temos cultivado em dias de hoje, e também nos afasta daqueles que nos roubaram o direito de viver em casas – mas bate uma tremenda saudade do chão! Tenho saudades do cão, dos passarinhos bairristas, do cheiro de terra molhada que só sente quem não corta ao meio o destino da chuva. Saudades do churrasco, das trepadeiras, de viver perto da rua, amigo da rua, inquilino da rua, parente do nome da rua. Estranhamente, o apartamento nos bota longe do céu, que ele é em arranha-céu, e a casa é em acolhe-céu. O ventre da casa, sua roupa maternal, sua pessoalidade, sua estrutura mais amiga da anatomia dos homens. As plantas não crescem em vasos, elas limitam-se aos vasos, como nós, tristes cidadãos em iminente ordem de despejo do mundo poético, limitamo-nos ao apartamento. Tenho saudades, sobretudo, de ver cedinho o sol cobrir o chão em que, plantados nossos pés, plantávamos plantas, criávamos bichos, curtíamos a rua de nossa pequenina história, de um canto em que podíamos, num privilégio cada vez mais impossível, respirar fundo e humildemente bendizer o dia, amá-lo sem pressa e sussurrar: este aqui é o meu lugar.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Mulher é bicho complicado...



Tudo começou com a mesa da sala. Compramos uma mesa branca na Tok & Stok, que ela escolheu. Essa mesa começou a descascar. Fomos trocá-la, depois de muito trabalho, de uma péssima assistência da garantia.
- Vê essa (disse eu): é bonita, é de madeira de verdade.
- Será mesmo madeira, amor?
- Bem, se não for, é madeira em tese, porque não há quem diga...
- Gostei dela. Vamos trocar.
Tocamos. Recebemos. Montamos.
No começo, tudo bem. Mas, do nada, ela falou:
- Essa mesa... Não sei não...
- Que foi?
- Nada...
Um dia, enquanto a gente jantava:
- Essas cadeiras são desconfortáveis... Estão empenando...
- Não estão. Veja só: estão normais.
- Então tá...
Sábado à noite, tomávamos um chopinho na varanda, e ela, do nada, mudou de conversa e, com cara de desprezo, olhou lá pra dentro e resmungou:
- Eu odeio essa mesa. Quando a gente se mudar, ela não vai de jeito nenhum!
- Eu gosto dela.
- Eu detesto.
Nunca esqueci aquela cara de desgosto. Profunda, sincera, atravessada. Coitada da mesa!
Um dia, chego do trabalho e ela fala:
- Mô, a geladeira quebrou. Tá aqui o orçamento: quase o preço de uma nova!
- Vamos comprar outra. É o jeito!
Dia seguinte, fomos à loja.
- Mô, veja essa: toda inox, preço bom, tem até um filtro na porta. Vê o congelador: uma fabriquinha de gelo pra você fazer seu cuba-libre...
- Ok. É bacana mesmo. Vamos levar.
Depois de uns meses, entro na cozinha e ela está olhando pra geladeira, fixa, pensativa, braços cruzados, mão no queixo.
Sussurrou, lastimou baixinho:
- Tem um amasso aqui... Acho que ela ficou muito perto da pia.
- Depois se ajeita...
- Ficará como original?
- Acho que sim.
- Tudo bem (disse isso vagamente, e deu de ombros).
Na semana seguinte, ela me chama:
- Mô, vem ver uma coisa...
- O quê?
- Os cantinhos estão enferrujando...
- Ôxe, e não era inox?
Ela passou as unhas pelas brechas, catou uma lasquinha de ferrugem quase invisível, esfregou-a nas pontas dos dedos e fez aquela mesmíssima cara, aquela expressão medonha que já começava a me apavorar.
- Melhor, na mudança, trocar ela também... Tô começando a...
- Nem pense... Avimaria, muita despesa!
- Tá bem. Mas, se der... Vou juntar uma grana...

Depois, num domingo à tarde, deitei-me na rede da varanda, abri um livro e afundei na leitura. De repente, olho pra esquerda e ela está no sofá, comendo tangerina e me olhando fixamente. Descascava a tangerina sem nem olhar pra ela. E me olhava, paralisada, atenta, arrancando a casca da fruta, mastigando os gomos me-ca-ni-ca-men-te. Tremi dos pés à cabeça. Perguntei:
- Que foi?
Ela sorriu, mandou um beijinho e disse:
- Tá na vidinha que pediu a Deus, hein, amorzinho...
- Ufa!...
- Como?
- Nada não...

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Casa antiga (cotidiano)


Imagino um homem antigo, um homem velho, um homem perto de morrer, mas ainda com um punhadinho de anos pela frente; principalmente: um homem muito atento aos acontecimentos em geral. Imagino-o em sua casa, uma casa antiga, uma casa que, quando construída, era em subúrbio, e hoje fica no centro da cidade, que a engoliu. Imagino essa casa com um jardim florido, um jardim fechado, um jardim que deu sombra e flores a todos os acontecimentos da vida desse homem: casamento (os jornais que leu), filhos (os livros que leu), aposentadoria (os discos que escutou), viuvez (o silêncio que foi) e o dia de hoje, em que esse homem, entre grades, vê, pelas copas e entre os ramos das trepadeiras, a cidade em que ele não nasceu, embora pise, neste momento, o chão da cidade em que nasceu – o que restou desse chão, o que não foi encoberto pela cidade nova que lhe impuseram.
 
Através das lentes de seus óculos, podemos ver o olhar estático do homem, um olhar parado, um olhar fixo, que pouco consegue fazer esse homem sonhar, porque tudo está muito perto: as grades, os prédios, os carros, a gente apressada, a morte – a morte, como a cidade, antes calma e feliz, e hoje próxima e sufocante.
 
Talvez esse homem imagine um último (único) ato de grandeza: pegar o revólver velho, que nunca usou, e sair por aí, matar três pessoas, danificar um carro de luxo e quebrar as vidraças de um arranha-céu... De que adiantaria? De nada! Em primeiro lugar porque lhe faltaria originalidade, e também porque a imprensa está curta, e o presente também está curto, e o futuro é o próximo da fila, cliente apressado que vai pagar sua conta de acontecimentos e dar lugar ao tempo que vem logo atrás, que também é ligeiro e quer livrar-se de existir: dizer o que aconteceu – UM VELHINHO ENLOUQUECEU E SAIU ATIRANDO ETC. – e depois de meia hora mergulhar no nada.
 
Talvez, sim, talvez esse velhinho possa, em vez de entristecer ou sentir raiva, sorrir largamente, abrir um baú e reler uma crônica que leu semana passada, de um escritor que previu acontecimentos que já haviam acontecido, pois na cidade desse escritor havia dezenas de velhinhos como ele, em casas antigas como as dele, que o escritor, ao voltar do trabalho, observava no meio do engarrafamento, e mencionava, por inveja e não por arte, porque sabia bem o escritor que, cada vez mais, a vida vai se tornando mesquinha, e ele (escritor) só tem pra se alegrar o que o velhinho lamenta (o presente), só tem pra sonhar o que o velhinho viveu (o passado), e tem só que lamentar o que virá, cinza e triste, e sem flores na recordação: o futuro.
 

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

10 coisas que só o matuto faz


Durante meus anos de sertão, vi o matuto fazer coisas nunca antes repetidas em conjunto num homem só, pelo menos no que me conste.

Seguem as de que lembro, e peço ao leitor que, se souber, aumente a lista:

1. Acordar às quatro da matina, trabalhar até às seis, comer uma buchada com cuscuz, arroz e feijão, e voltar à roça, leve-leve, como se nada tivesse acontecido;

2. No fim desse mesmo dia, sentar com os “cumpadi”, tomar um litro de cana com carne assada, dormir e acordar às quatro da matina, trabalhar até às seis, comer uma buchada com cuscuz, arroz e feijão, e voltar à roça, leve-leve, como se nada tivesse acontecido;

3. Brincar com uma criança virando criança também, sem soar ridículo, falso ou imaturo;

4. Fazer de conta que o sol não existe: não transpirar, não despelar, beber pouca água;

5. Matar um bicho com ternura. Um homem da cidade não mata um bicho, assassina-o. O matuto o mata como se lhe fizesse uma eutanásia;

6. Dormir em rede – que inveja! – como uma criança dorme dentro da barriga da mãe. Em rede ele dorme, em camas nós apenas passamos a noite;

7. A clássica: ter resposta pra tudo. Com a mesma ternura que mata um bicho, desmoraliza um oponente;

8. Entender que não adianta reclamar. Matuto não reclama quase nada. Ele é sábio, e sabe que ninguém ouve ninguém nesse mundo de Deus. Ele vai em busca de solução, controlado, duro, mesmo ruindo, mesmo deslizando pra desgraça;

9. Tirar onda das autoridades (Padre, Prefeito, Delegado, Juiz, Promotor) sem desrespeitá-las. Criticar sem agredir. Lembremos a antológica frase se Jessier Quirino, quando disse que o matuto disse que o cabra estava “mais iscondido qui rapariga di pastor...”

10. Passar duas horas acocorado, mordendo um pedaço de planta, levantar e sair andando de pernas soltas, como se nada tivesse acontecido. Eu mesmo, em cinco minutos, entrevava.

Isso só pra dizer o que me consta.

Salve a grandeza da matutada!

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

TPM (cômica)


O cara está em casa, sossegado, lendo.
A mulher entra, bruscamente, como polícia em boca de fumo. Dá um suspiro, joga a bolsa na mesa de qualquer jeito, apoia a mão na cadeira e olha pro chão.
Cometo o erro de perguntar:
- Tá de TPM?
Ela arregala os olhos e diz:
- Pronto, já começou! A pessoa chega em casa, cansada de um dia de trabalho, e ainda tem que ouvir uma dessas!
Cometo o segundo erro inaceitável, falando alto pra mim mesmo:
- Ela está de TPM...
Ela para em frente a mim, braços cruzados, pé esquerdo martelando:
- Você já vem me pintar do que não existe! Com essa sua coisa de escritor, inventa uma personagem! Não será o SEU estresse por conta da polícia? Eu NÃO estou de TPM! Que saco!
Toma banho, janta calada e vai dormir.
No dia seguinte, a mesma coisa. No terceiro dia, também.
No quarto dia, ela chega: suave, maneirinha, um colibri de rara ternura.
Brincando com o perigo, pergunto:
- A TPM passou?
- Passou...
- E por quê, quando eu perguntei, você não admitiu que estava de TPM?!
- Porque, quando você perguntou, eu estava...

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Surdos, mudos e dançarinas


Faz muito tempo, mas essa lembrança nunca desbotou em meu coração; está nele como uma rosa acesa dentro de um cofre – uma crônica perdida, que hoje reescrevo:

Eu vinha no lotação, lá em Maceió, pensando em nada, o rosto na janela. Ao chegar à Praça Centenário, demos com um tremendo engarrafamento e a cidade parou de passar, bem em frente a uma parada de ônibus lotada, cheia de gente apressada em fim de expediente, dando-se a si e à vida uma importância, uma urgência que não é bem o que a vida pede. Fiquei olhando com indiferença pra tudo e todos, matando tempo. Mas, alto lá! Um casal na calçada chamou minha atenção. Um casalzinho a mais, mas tinha algo diferente com eles, eles tinham um não sei quê... Não os entendi, logo assim de cara, e fiquei a observá-los. Que se passava com os dois?... Ah, vejam só: eram um casal de surdos-mudos! Que graça eles eram! Com que delicadeza davam-se em carinhos! Eles faziam pequenos gestos, desenhavam coisinhas no ar, escondiam-se nos pescoços um do outro como se fossem cochilar em pleno caos urbano. Sorriam, indiferentes ao barulho e às palavras, espalhando formas e expressões que eram ver a calma neste mundo desesperado. Eles eram a coisa mais linda, o que mais comunicava afeto, com aquela suavidade que, em dois movimentos, transmitia um sentimento que eu jamais conseguiria alcançar, mesmo em um milhão de palavras a um bilhão de leitores. Lá estavam eles, lindos, doces, poetas altíssimos em plena atividade; ali, de bandeja pra nós; ali, a céu aberto, expostos à vida, mas cobertos de pudor – quem ousaria perturbá-los?

Esses dias, observando, admirado, as estudantes e docentes do curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco, vi algo semelhante, essa intenção de quem quer pôr a palavra à esquerda e mostrar, em gesto, o que trás no coração, e acaba dizendo mais que os tratados de um ônibus cheio de eruditos: a boniteza de uma pessoa alheia ao texto, saltando rumo ao além-texto onde vive o casalzinho.

Fico pensando: servirá a palavra apenas pra falsificar a vida? Proponho que, no final de uma tarde qualquer, nós, como os surdos-mudos, pelo menos uma vez na vida tentemos olhar pra nossa cidade como se a palavra nunca houvesse existido. Talvez, enfim, enxerguemos um pouco de beleza.



(P.s. tenho que confessar uma coisa, pouco lírica mas sincera: hoje eu lembro o mudinho e penso: quem sabe paparicar mulher daquela maneira nem precisa trabalhar... Será que ele ensina aquela arte pra eu usar aqui em casa?)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Você JÁ é um espírito: digo e provo!


Amiga leitora, amigo leitor, sentem-se aqui na mesa desta crônica e peçam os seus drinques, que hoje é dia de sinceridade.

Primeiro, pra entrar no clima, respiremos fundo, depois olhemos pra esse céu em noite clara, estrelada – um brinde e saravá!

- Tim-tim; saravá!
- Tim-tim; saravá!
- Tim-tim; saravá!


Vamos ao assunto que dá título à crônica, e confesso que estou aflito, pois esses dois (leitora e leitor) encaram-me com uma tremenda desconfiança – peraí, vou tomar uma lapada; pronto.

Amigos, vamos começar a provar, gole a gole, que nós já somos espíritos (estalo os dedos, aliso o bigode, acendo uma cigarrilha). Olhem pra esse boteco: os quadros da seleção brasileira, o balcão, o dono estressado, as mesas de plástico, o ventilador de teto, as quengas fazendo barulho etc. Tudo, pra começar, tem suas cores (envelhecidas, como em qualquer boteco que se preze, mas cores): amarelo, vermelho, azul, cinza, rosa e por aí vai, não é? Não. Não confie nos seus olhos – princípio que vai muito além do mundo do chifre e da malandragem. As cores não existem. Nada tem cor. A cor é uma ilusão criada pelo cérebro. O cérebro lê a informação que a luz trás através de nossos olhos e atribui cor às coisas; ele inventa isso, por assim dizer. A causa disso? Ainda se divide a ciência. Mas o fato é que nada tem cor, nem o preto-e-branco com o qual você, à moda antiga, já deva estar imaginando este boteco. Nem isso. As coisas não têm cor nenhuma. A luz as revela e ponto – portanto, leitora amiga, aquela mulher que entrou aqui com o “coroa” não estava nada “exagerada”; ilusão sua, viu? Pensando nisso, veja aqueles vagabundos, num canto, jogando dominó. O dominó é feito de marfim, edição de luxo – afinal não são quaisquer vagabundos, os que jogam: são... deixa quieto. E eles (os dominós, claro, jamais os vagabundos) talvez sejam a coisa mais concreta que haja nesta espelunca, onde tudo é oco e empoeirado e enferrujado e prestes a desabar. Mas, calma! Cada pedra desse e dominó é formada por átomos, do mesmo jeito que as paredes velhas daqui o são de tijolos. Esses átomos são feitos de... de... de... espaço! Como? Sim, cara, eles não contêm praticamente p... coisa nenhuma! Eles são como um ovo, em que a gema tivesse um centímetro e a casca ficasse a cem metros de distância. Sendo que a gema é feita de energia, e a casca também. Entre a gema e a casca não tem NADA! Ou seja, nada desta espelunca existe de maneira concreta, é tudo espaço, energia e vazio. Nada sólido (nem a carne velha do tira-gosto), nada real (nem a doença venérea iminente), nada, nada, nada... Mas, argumentou o leitor à minha esquerda (a mulher ainda não disse uma palavra: está pensativa e distante), estou vendo e tocando tudo que há aqui! Calma (digo eu)! Você vê, e do jeito que está tomando pinga verá dobrado, só o que a luz manda pelos seus olhos dentro! E (pergunta ele) ela não manda pra dentro tudo o que há? Claro que não (digo eu)! Por exemplo, nesse momento, mais que esse cheiro de cigarros e linguiça frita, há uma nuvem de partículas atravessando os corpos da gente como a luz do sol atravessa uma peneira, atravessando esses espaços entre a matéria (entre a gema do ovo e sua casca irreal) com mais facilidade ainda que a da chuva pelas goteiras daqui; algumas, como os chamados neutrinos, passam por dentro de você, afetam seu DNA e influenciam na evolução! Você vê apenas uma parcela de tudo o que está se passando ao seu redor, aquilo que a luz consegue trazer, e, ainda assim, como no caso das cores, só o que sua mente permite repassar... E, claro, com suas mãos feitas de vazio, você não toca outros vazios; você apenas pensa assim porque, como dois imãs de geladeira ao contrário, sua mão e as coisas se repelem, mas nunca se tocam, o que não o impede de lavá-las quando sair desse banheiro assassino daqui.

Nesse momento, a leitora que, por ser mulher, já é naturalmente tendente ao abstrato, sai da meditação e manda:

- Então somos seres formados por nada, enxergando uma parcela mínima de coisas que não são de verdade... Somos tão irreais quanto um personagem de videogame, ou do filme Matrix...

- Eita (disse eu), que mulher é danada pra sintetizar as coisas bem (quando quer)!

E o leitor, olhando ao redor, depois pras próprias mãos:

- A gente sempre imagina o espírito como uma coisa inexistente, porque crê no concreto, pensando que ele é concreto... Mas, e Deus, e a religião?

- Amigo velho, não vim complicar falando de religião, nem passar vexame falando do Inalcançável (e vice-versa). Todos já sabem que eu não acredito que tudo o que existe exista por acaso, por coincidência, porque seria como despejar naquela praça uma carreta de dominós e todos, tchan!, darem seis – mas esse é outro papo, pra depois. Eu vim falar apenas isso (e as conclusões, cada um com a sua): que tudo ao nosso redor é uma magnífica ilusão, uma puríssima ilusão brilhante; tudo, desde a lua que banha esta noite de sábado até os acordes daquele violão num cantinho, passando pela latrina velha, tudo é feito da mais pura ideia, é feito de nada, de vibração, como o samba que agora escutamos. Se você procurar, no fundo de tudo, vai achar nada dentro de nada, como quem procura um pensamento dentro de uma cabeça. Portanto, somos espíritos, na exata definição popular do termo: criaturas irreais e “impossíveis”, feitas de coisa alguma, vagando por aí; espíritos bebendo essa bebida, que é feita de vazio e energia, e sentido amor, que é feito de distâncias ainda maiores. Isso, na minha humilde opinião, é muito mais bonito que a perspectiva de sermos feitos de pedra e termos um espírito em nós, como um inquilino abstrato. Portanto, quando você vir alguém dizer que viu uma coisa real, que a tocou, ou esse alguém é doido ou tá querendo lhe (ou se) tapear. Mas, se for um doido, e essa coisa for uma pedra, e ele atirá-la contra você, não convém deixar de desviar sob o argumento de que a pedra é uma ilusão...*



(* Claro que, fora o muito que ignoro, deixo de citar coisas importantíssimas, como a Física Quântica, o estudo dos universos paralelos etc. É que, além de minhas limitações pessoais, que já são muitas, o espírito despretensioso desta crônica não comporta tudo isso. Há farto material sobre esses temas na internet, em livrarias, documentários etc. – e o melhor: em linguagem facílima, que a gente alcança numa boa.)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Trinta anos de idade, e contando ...





Chega uma época em que a gente para, olha pra dentro e conclui (às vezes com um baita susto): eu sou um adulto de verdade, feito achava que só meu pai sempre seria...

De repente, a gente também se dá conta (sorrindo) que viveu décadas numa espécie de entorpecimento, de delírio provocado por televisão, música em demasia, mulheres desperdiçadas, bebedeiras que nos levaram a lugar nenhum – ou melhor, mais justo, mais honesto: trouxeram-nos até o dia de hoje.

É o tempo em que tudo o que foi (menos a infância) parece repetido, sem graça, vazio; em que, se olharmos pra frente e quisermos ainda viver como sempre vivemos, cairemos na loucura, no suicídio, no retardamento.

É o tempo da casa, do trabalho, da mulher que dorme, da criança que cresce, de pensar na existência da vida.

É o tempo de entender o quanto amamos nossos amigos, que, de mãos dadas conosco, venceram as trevas e hoje se olham (perplexos reconhecidos), a dizer: velho, obrigado, você ainda está comigo! É você mesmo, não? Claro que sim!

Lembra, Felipe, de quando você cochilou ao volante e quase nos manda pro inferno? Lembra, Rodrigo, da Belina 1990? Lembra, Zé Edson, de quando você aprendeu a tocar violão? Lembra, Lula, daquele soco que você deu na quina da parede? Lembra, Frank, do fusca que corria como uma ferrari? Lembra, Anum, da mulher desgraçada que levou a mobília da sua casa enquanto você dormia de pileque? Lembra, Diogo, de você vestido de diaba no bloco? Lembra, Mário Aloísio, das mulheres banguelas da Escorpio´s? Lembra, Vanessa, do primeiro livro que escrevemos? Lembra, fulano, que você ficou chateado porque esqueci de mencioná-lo numa crônica, e não se consolou nem quando lhe lembrei que minha memória é um lixo? Lembra? Lembra? Lembra...

Paulo Renault (saudoso amigo), poeta genial que declamava sua arte nos botecos de Maceió e encantava quengas e freiras, dizia que raramente um artista se faz antes dos trinta anos de idade. Sim, ele está correto, e isso é porque em regra um homem só se olha no espelho à vera, só se encara de verdade a partir dos trinta anos.

Hoje, com essa suavidade ao meu redor, não posso dizer que tudo não passou de um sonho, mas que tudo passou de um sonho a outro sonho, mais lúcido e profundo, mais conforme nossa corajosa fragilidade e nosso alcance – que por algum mistério vai além de nós.

Trinta e poucos anos pra começar a entender que a mulher é um segredo que só se revela, e mesmo assim parcialmente, no cotidiano, e se agirmos com uma labuta insistente e encantada de cientista. Que o filho não é nosso herdeiro, é a flor de nossa razão. Que, graças a Deus, Deus jamais seria como aquele que o padre da escola nos ensinou. Que a música, numa festa, não é coadjuvante, é convidada de luxo, é de ser paparicada e ouvida. Que a bebida é feita pra sorrir e não pra gargalhar. Que os amigos, mais que gente de se abraçar e apertar a mão, são nosso próprio coração, enlaçado e protegido, caminhando rumo ao tempo adulto, depois rumo à velhice, e depois, sim, depois rumo a uma silenciosa despedida, rumo à crônica definitiva.




sábado, 11 de agosto de 2012

Perguntas pra quem entende e pra quem não entende de futebol (cômico)


É um costume consagrado, na crônica brasileira, falar-se de futebol.

Mas, confesso humildemente, de futebol não entendo nada.

Então respeitosamente lanço àqueles que manjam do assunto as seguintes perguntas (se o leitor quiser, acrescente outras), pra ver se embarco nessa onda brasileiríssima, essa lacuna em meu repertório.

Lá vão:

1) Por que o Brasil é chamado de O País do Futebol? Se temos duzentos milhões de habitantes, todos praticando quase que só este esporte, e com biótipos pra tudo que é função, não deveríamos ser tão imbatíveis quanto os jogadores de basquete dos EUA? Por que levamos lapada de países como a França, do tamanho quase que da Paraíba, e que têm outras coisas pra cuidar? Será que não temos mais vocação pra torcer que pra jogar?

2) Por que se duvida da supremacia de Pelé alegando-se que naquele tempo se corria menos que hoje? Isso muda a técnica? Todos não corriam menos? Que tem a ver o futebol com a maratona?

3) Por que alguém que nem sabe onde fica a sede de certos clubes (Flamengo, por exemplo), nem o que significam seu nome e sua história, se torna fanático por esse time? Por que, sendo assim, morrem e matam (literalmente) por uma causa sem causa?

4) Por que alguns comentaristas dizem, num programa, que têm saudade do futebol-arte e, no outro, que jogo bonito não vence partida?

5) Por que noventa por cento desses mesmos comentaristas repetem, antes de todo jogo, isso: “o time A vai partir pra cima, e pode liquidar logo a partida; mas, se o time B partir pro contra-ataque, pode vencer”? Isso eu também sei dizer...

6) Por que os comentaristas de arbitragem quase sempre só criticam os juízes depois do replay?

7) Por que se diz que o craque é um artista da bola, e se condena o fato de ele ganhar milhões, e não se faz o mesmo com um artista da música, mesmo sendo este um perna de pau? E por que a gente só critica a raparigagem daquele?

8) Aliás, falando da pergunta anterior, por que a gente critica o Kaká por ser careta, o Ronaldinho por ser farrista e biriteiro, e o Romário por ser farrista e não beber? Pra agradar o cara teria que ser careta, farrista, cachaceiro e abstêmio ao mesmo tempo?

9) Por que se diz que Galvão Bueno é burro? Um cara que consegue animar uma corrida de Fórmula-1, que é praticamente um engarrafamento de luxo (porque ninguém ultrapassa ninguém), não deveria, pelo menos, ser chamado de brilhante? Não seria demais querer que, nesse tanto tempo, ele nunca dissesse uma bobagem? Quem conseguiria isso?

10) E a última e, pra mim, a mais intrigante: um crítico de qualquer coisa (cinema, literatura, culinária etc.) ou não atua na área que critica, ou nela é ou foi gênio, sob pena de desmoralização. Por que cargas d’água, então, a gente houve e considera a opinião de quem, quando esteve dentro das quatro linhas, foi inimigo declarado da bola?

Aguardo as respostas, e por favor não esculhambem minha mãe – ou esculhambem, mas refiram-se àquela mãe imaginária que todo brasileiro tem pra servir de alvo pros amigos, que inimigo bate mesmo é na mãe biológica.


Atenciosamente,

Pablo de Carvalho

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Crônica pro Dia dos Pais (cotidiano)


Minha filha, neste Dia dos Pais, o seu velho gostaria de lhe pedir uma coisa impossível de se pedir a uma criancinha de cinco anos de idade: que você esqueça o comércio e a pieguice do dia de hoje, olhe pros meus olhos (esses olhos bobos que admiram seu rostinho sonhador), e tenha paciência comigo. Seu olhar seja então, assim no meu encanto e na minha fantasia, crescido antes do tempo. Veja você, portanto, o rosto de um homem que é seu pai, e tente entendê-lo. E esse olhar de homem, através do qual eu agora espalho sobre você o meu amor todinho, é todinho o olhar de meu pai, é como meu pai me olhava em menino; o mesmíssimo olhar, apenas filtrado por meu coração (que é seu) e repetido sobre você à minha imagem e semelhança.

Um dia, já mulher, quando ler esta crônica que agora lhe parece maluca, você compreenderá que um dia, enquanto eu a acalentava no encantamento que foi ter você pequenina, miúda, de mãozinhas doces e sorrisinho lindo, eu fui um homem que viveu entre gente, que foi à rua e voltou, que bateu e levou pancada, que escreveu a palavra possível, que teve os amigos que conseguiu merecer (teve-os, é melhor confessar logo, mais do que mereceu), e que chegava do mundo pra encontrar você e dizer tudo o que não viveu, porque o que viveu foi só sofrimento e desamparo, e você era a única gratidão, a única razão de eu me lavar da mágoa, olhar pras estrelas e sussurrar: obrigado; ela existe!

Sim (que coisa, né?), isso é o que lhe deixo: um velho tolo e sofrido; um velho complicado; um velho cheio de cidades nos olhos, cheio de dor a esconder e perdão a pedir; um velho injusto que não quer aceitar a injustiça, e que, por isso mesmo, não aceitará, no Dia dos Pais, mais que olhar pra você e sussurrar: “Vê, que coisinha mais mimosa; que coraçãozinho que eu não alcanço, e que diz que me ama!...”

Nenezinha, bebê, florzinha amarela que eu trago na palma das mãos como num aquário: cresça, olhe pra mim, olhe pro seu avô, olhe pra todos os que têm ou tiveram pai, pra todos os que têm, tiveram ou terão filhos, e sinta amor – do jeito que as coisas vão, talvez, quando você crescer, essa palavra só exista num dicionário –, mas sinta pena dos homens que precisam ser lembrados por terem filhos, porque (diz o povo com sabedoria) o pior defeito é a ingratidão - e eu nunca lhe serei ingrato.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A mulher desenhando (cotidiano lírico)


Uma mulher desenhando é a coisa mais linda!

Ela se senta com ternura, ajeita o corpo na cadeira, imobilizando-o docemente, feito uma estátua perto de virar pessoa, e, em curtíssima meditação, inspira e expira o ar sortudo que passa diante de seu rosto em perfume.

(a manhã nasce sobre o Brasil, e os poucos passarinhos que ainda vivem na cidade cantam, apesar da cidade)

Depois, ela abre o estojo e tira um lápis, que lhe vem à mão como um homenzinho magro e rendido, e prestes a cumprir sua sina (como todo homem que se preze): ser instrumento da mão feminina, riscar o que ela manda, achando (pobre tonto) que risca o que quer.

Ela fecha o estojo, e é como se mostrasse ao lápis, ao homem-lápis, isso: vê o mundo, criatura, por minhas mãos, porque dentro desse casulo em que você vive, com tantos lápis sem razão de ser ao seu lado, você não passa de um pedacinho de carbono...

(há café sendo coado, há cuscuz no vapor, e esses cheiros se espalham pela casa, mas nada mais que isso: silêncio, por Deus, que há uma mulher desenhando na sala...)

Então ela abre o caderno (como se abrisse as portas da vida), inclina o rosto e joga por cima de um ombro os longos cabelos, os cabelos bonitos que deixam ver o rosto inclinado, pensativo, escolhendo a coisa que pretende criar.

(uma criança acorda, mas para no corredor, sonolenta e curiosa. Fica a querer entender sua mãe, que sem motivo aparente tomou seu material emprestado pra desenhar, nesta manhã igual às outras, neste dia que nem de férias é)

Seus olhos (os da mulher que desenha) estão atentos, há neles alguma coisa mágica. Sua boca está tensa, dentes pressionam o lábio inferior. Sua mão faz o lápis girar. Enfim ela se ilumina, sorri discretamente, acende as pupilas e desenha algo que começa parecendo uma pedra, depois lembra uma flor, depois lembra um bicho, mas dos retoques finais surge um rosto de homem, de um homem preocupado, de olhar distante; de um homem sempre à procura de alguma coisa perdida no infinito – essa coisa que ele procura, aposto meu braço direito, é a mulher que o desenha.


quinta-feira, 26 de julho de 2012

Os chifres de Robert Pattinson (cotidiano)


Num bar, ou melhor: num boteco, em beira de praia, lá na cidade das coisas impossíveis, depois de um dia duro de trabalho, sento-me com Robert Pattinson (aquele vampiro da Saga do Crepúsculo, que levou chifre do diretor) pra tomar uma bicada.

Ele está um bagaço: branco, anêmico feito um cadáver, inimigo da vida.

O garçom chega e pergunta o que vamos querer.

- Uma cerveja gelada, uma dose de cachaça e um caldinho de peixe, digo eu.
- Um copo de sangue. Não quero comer nada, diz ele, friamente, escondendo os caninos.

O garçom sai com os pedidos.

- E então, Beto (digo eu), que bronca, hein!
- Nem fale, “man”; estou com vontade de matar aquela vampira!
- Avimaria, e vampiro morre?
- Não, “man”... É verdade... Ó céus, terei de suportar o chifre eterno...
- Danou-se...
- O pior é que eu realmente pensei ter encontrado o amor eterno! Tudo estava tão perfeito! O público aos meus pés! Aquela “girl” condenada aos meus pés! Tudo era meu...
- Sim... A eternidade... O sangue das massas, o sangue dos não-eleitos... A boniteza eterna... (falei isso meio distraído, com um cigarro aceso e os olhos pousados no mar) Que sonho!
- Como é, “man”?
- Nada... Deixa quieto... Sim, mas, e o futuro? A fila anda, hômi! Ó: tem umas meninas naquela mesa olhando pra tu...
- Não tem essa de futuro, “man”... A vida acabou.
- Veja bem, Beto: a vida tinha acabado quando você virou um vampiro, eterno na vida como na tela, e enganado nas duas (quase sorrio, mas me contive respeitosamente). Agora, a vida começa!
- Como assim?

O garçom chega. Brindamos, tomamos um trago. Eu sigo a dizer:

- Meu velho, a vida não é só sugar o sangue alheio e dar água pra elefantes! Acorde desse caixão! A vida dói, e a vida mata! Mas ela é bonita, tem uma beleza difícil de explicar, quase impossível de justificar...
- Estou entendendo...

Tomo outro copo, viro a dose de cachaça. Encorajado, continuo:

- Aquele diretor que atacou o pescoço da sua mulher, ele não dirige só filmes, como você agora pode entender. Ele dirige tudo que está abaixo dele (gente inclusive), como se fossem suas coisas, como seus brinquedos, e ele também é dirigido por outros motoristas, digo: diretores. Vocês jovens apenas pensam que comandam a vida de vocês, e que são eternos, e que podem enfiar os dentes na jugular de quem quiser, indistintamente...
- “Man”, você está sendo muito duro comigo...
- Desculpe, é que olho pra você e ainda vejo aquele vampiro à prova de balas e tal... Mas, já que comecei vou terminar: vocês são a janta que pensa que janta quem os janta, entendeu?
- Não. Coisa de brasileiro, esses ditados! Ninguém entende nada!
- Meu velho, deixa pra lá... Brindemos de novo...

Nesse momento o cara de voz e violão começou a tocar, e mandou, logo de cara, essa canção:

“Garçom, aqui, nessa mesa de bar...”

Eita, que o galã jogou seu copo de sangue na água, e agarrou pelo gargalo a minha garrafa de cerveja, que bebeu de uma vez só, de uma só virada, e à medida que a bebida descia as lágrimas lhe escorriam pela cara; primeiro, lágrimas de sangue; depois, lágrimas de “água e sal”, lágrimas de gente...

“...No bar todo mundo é igual/ Meu caso é mais um, é banal!...”

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Deus não existe (estilo herege)



(Antes de mais nada, imito os gregos na famosa frase: EVITE O EXCESSO, cujo espírito deve povoar toda esta crônica)

O Brasil está se tornando um país chato pra caramba. Antes, era um pobre bem humorado, um estrategista contra o desespero, um brincalhão que não conseguia esconder sua tristeza. Agora é um novo-rico padrão, com todas as virtudes e cafonices de um novo-rico.

Publicamente, tornou-se (o Brasil) um senhor respeitável, politicamente corretíssimo, e com um medo tão grande de desagradar que, pra começar, criou a expressão (desgraçada expressão) afro-descendente pra não ter que chamar o cara do que ele é: negro. Ouviram? Sim, eu disse: você, amigo, é negro, bata no peito e repita comigo! Agora, eu pergunto: o branco será euro-descendente?, o índio será o não-descendente?, e o mestiço... o pluri-descendente? – eita, o mestiço então é “fidiquenga”? Vou processar alguém!

Depois, criou-se a Homofobia, e sepultou-se 40% das mais geniais piadas nacionais (Chico Anysio, hoje, seria preso depois do primeiro programa), sem conseguir-se diminuir a discriminação – aliás, agravando-a. E o cara não é gay/veado/baitola, nem diga isso!, ele é “homoafetivo”. Ou seja, dois negros homossexuais seriam um casal de afro-descendentes que viveriam uma relação homoafetiva, e se você chamá-los de negros gays, não importa o quão respeitoso seja o seu tom, é risco de cadeia, linchamento e destruição da sua imagem pela mídia.

Mas, como a coisa pegou e espinhentos, anões, gordos, zarolhos, pernetas, feios, criados por vó etc. queriam também sua cota de “respeitabilidade”, sintetizou-se o pudor cacete no “bulliyng” (em nordestinês, o “bulindo”), que é o seguinte: deixem essa criança intocada, nada de piadas com ela. Mantenham-na em constante e saudável estado de quase histeria e desconfiança, pois esse negócio de alternar riso e choro é perigoso, é muito instável!

Mas o novo-rico Brasil tem também seu lado obscuro... Se, de um lado, é extremamente cheio de pudor, do outro é depravado, vulgar, escandalosamente seboso. E essa vulgaridade, antes ficasse só na seara sexual; ela vai além: é na música, na TV, nas ideias, na vida em geral... Sim, o país que anda de gel no cabelo, e terno e gravata, por debaixo está de fio dental...

E Deus, o que tem com isso?

Mas é sobre isso que vim prosear, ora essa!

Porque o Brasil novo-rico é também o país que criou um Deus. Criou-o, aliás, à sua imagem e semelhança (do país, e não de Deus), porque novo-rico que é novo-rico não gosta de coisa usada! Assim, como disse Rosane Collor, não foi coincidência, mas Jesuscidência haver esse Deus maravilhoso criado pelo Brasil, e não vou me esconder em metáforas: criado pelos segmentos mais radicais da igreja evangélica, a partir de um projeto empoeirado da igreja católica – advirto aos eruditos: falo como povo, e não como o teólogo que não sou.

Eu, cronista incurável, converso muito com o povão na rua, e eles me explicaram como é esse Deus. Ele é assim: É furioso. Se você não cumprir o que prometeu, lhe esmaga como a uma formiga! Sua lei, sua justiça: “olho por cabeça, dente por boca.” É fiel: não volta atrás do que disse nem com a moléstia, mesmo que esteja errado a toda evidência. Por exemplo: condena ao inferno quem não o aceitou, mesmo seja um homem do bem, imaculado, e manda pro céu quem o aceita, mesmo sendo um traficante-pedófilo-nazista que beije a Bíblia trinta segundos antes de morrer. Estranhamente, é homofóbico: lugar de gay é no inferno... E praticou bullying contra muita gente, lá nos tempos da Bíblia (Isaac que o diga...). Não chega a ser racista, mas discrimina os não eleitos, os não evangélicos – coitados dos budistas, têm mesmo que meditar pra aguentar tanto desprezo... É comerciante: recompensa fé com dinheiro. É vaidoso, global: tem que ser amado, paparicado, adorado, ter o nome repetido o dia inteiro – se o cabra falar dormindo melhor ainda: repetir o sagrado nome noite adentro... É censor: pra ele só existe um livro: a Bíblia. Pros demais: fogueira. Outra coisa curiosa: é do sexo masculino... É “o” Deus... Isso é machista e sem utilidade, não? E digo mais: não sei se salva almas, mas salva imagens que é uma beleza: tanta gente canalha e criminosa, a primeira coisa que faz quando a máscara cai é “aceitar” Jesus e sair dizendo, a plenos pulmões, que o fez, como uma necessidade de fora pra dentro, e não de dentro pra fora... É... É isso que vocês todos sabem... Ah, cansaço!

Esse Deus, meus amigos, não existe, porque uma força capaz de criar, do nada, o átomo, o tigre, a música, as galáxias, a beleza, a mulher (e, claro: um Cristo, um Buda, um Ghandi, um Chico Xavier); algo com tamanha inteligência, com tamanha virtuosidade, tão esplendoroso e tão distante de nossa pequena compreensão, jamais teria tantos defeitos de caráter, jamais seria pior que muitos dos próprios filhos.

Deus não existe. Existe, apenas, a palavra Deus, e eu não creio em palavras, creio no óbvio: que tudo o que há, se fosse fruto do acaso, seria como o resultado de quem jogasse em apenas dois números e ganhasse na mega-sena; mas, tudo sendo fruto de uma Gigante Potência, de uma Suprema Inteligência (em que creio plenamente, e diante da qual me ajoelho em humildade), não pode tentar ser definido pela burrice humana, sob pena de alguém desejar apedrejar um terreiro de matriz africana, chutar uma estátua de mulher, ou pior: furtar a mixaria de pobres, ignorantes, maltratados, fracos de caráter; os filhos de Deus...

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Os quatro burocratas (cotidiano)


Num bar respeitável (“bar respeitável” é pleonasmo ou contradição?) do centro de Recife, durante a “happy hour” (“happy hour” é ironia ou mau gosto?), há quatro burocratas numa mesa, que observo, enquanto meu chope chega.

Um deles, de gravata fechada, terno impecável, duro feito poste, bebe uísque. O uísque tem a exata proporção entre gelo e bebida, e o guardanapo por debaixo do copo está tão engomado quanto a camisa do burocrata. Ele o bebe com extrema precisão, e mantém a dose nem forte nem aguada, enquanto fala aos outros três:

- Sem dúvida, a gestão por resultados, pautada em rígido controle de padrões e formulários, é coisa irreversível. Cada coisa em seu lugar, cada funcionário com suas tarefas ma-te-ma-ti-ca-men-te descritas e monitoradas!

O segundo está de gravata frouxa, cabelo descuidado, barriga protuberante e desabotoada, deixando o umbigo à mostra. Bebe cerveja, e seu olhar tristonho não desgruda do copo, que segura com os cinco dedos, enquanto lastima:

- É dura essa vida. Muita despesa, muita pressão, estresse insuportável. É preciso aguentar. Júnior quer entrar na faculdade, e me disse que quer fazer Direito ou Administração. Além disso, o plano de saúde de mamãe subiu de novo! Barra pesada...

O terceiro está de gravata entreaberta, mas pronta pra apertar caso veja movimentações no bar que indiquem a chegada de um alto gestor, um chefe, alguém de elevado escalão. Com malícia nos olhos, passa a vista pelos três e, em tom confidencial, declara:

- O Gomes, do setor de logística, está dando resultados terríveis! É um posto estratégico, entendem? E a equipe dele é uma lástima! Deveríamos, pelo bem da empresa, minar esse flagelo, porque NÓS, certamente, faríamos mais jus àquelas vantagens e, claro, àquele trabalho importantíssimo! Aqui pra nós: soube que ele anda bebendo demais...

O quarto, de paletó amassado, tem um violão no colo, já está com a gravata amassada e enfiada no bolso da frente, e vai a meio caminho do pileque. Os três o encaram, inquisitivos, como esperando sua opinião. Ele salpica um solinho, e manda ver:

- “Dinheiro na mão é vendaval, é vendaval, na vida de um sonhador, de um sonhador! /Quanta gente aí se engana, e cai da cama com toda ilusão que sonhou...”

Sorrio. Meu chope chega. Olho pra rua. Vejo os carros engarrafados, os ônibus, com jeito bovino, e a gente, fazendo trilhas nas calçadas como formigas.

Volto aos quatro, que já aprofundaram o papo.

O impecável:

- Temos que organizar as finanças, da empresa e as pessoais, que a vida é dura se não há disciplina. Meu pé de meia, e minha aposentadoria privada já estão ma-te-ma-ti-ca-men-te planejados...

O triste:

- A vida é um castigo... Minhas taxas estão péssimas: colesterol, ferrentina, glicose... A pressão, então, nas alturas! Terei que me acostumar à vida sem sal...

O estrategista:

- Ambição saudável não é pecado! Precisamos, merecemos posições melhores, e pra isso, só unindo forças! O mundo é dos mais sabidos! Escutem o que digo, pois acho que estou falando pra estátuas!

O do violão:

- “Eu fico com a pureza da resposta das crianças: é a vida, é bonita e é bonita!”

Uma viatura passa, sirene nas alturas, e por um instante todo o bar, salvo os quatro burocratas, para pra ver. Rapidamente tudo cessa, e os ônibus, como bois, andam, e os carros, impacientes, buzinam, e a gente, metodicamente, caminha.

E na mesa os burocratas...

O estrategista:

- Quem vai pedir a conta?

O impecável, em gesto solene e elegante, levantando o indicador discretamente:

- Garçom...

O triste que, por estar distante e de olhos caídos, não viu o impecável pedir a conta, levanta o braço com extremo esforço, mas não tira a cara da mesa.

O do violão:

- “Eu vou beber “arrudiado” de mulher, devo e não nego, pago quando puder!”

Chega o garçom.

O impecável pega a comanda, saca um smartphone, calcula tudo e diz:

- Está tudo em ordem. Pra mim, que bebi uísque, são quarenta reais. Para vocês, trinta pra cada.

O triste saca seis notas de cinco do bolso e, com dor no coração, deixa-as debaixo de um copo.

O estrategista puxa a carteira e, com desconfiança contra os demais, abre-a cautelosamente, escondendo seu conteúdo. Tira uma nota de vinte e uma de dez, e as entrega diretamente nas mãos do impecável, murmurando:

- Esse bar é bom, mas deveríamos estar em outro patamar de luxo...

E o músico, deixando suas notas na mesa, taca:

- “Já vou embora, mas sei que vou voltar/Amor, não chora, se eu volto é pra ficar...”

Chegou também minha conta, e achei engraçado à beça quando passei o cartão magnético na maquineta, e ela acendeu a telinha, como dando boas novas, que li feito legendas debaixo dos quatro burocratas que se iam: TRANSAÇÃO ACEITA.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Quem é burro? (estilo policial)


Se tem uma coisa que aprendi durante os anos em que fui delegado de polícia no sertão, é que não é muito prudente tirar onda com um matuto.

O matuto, disse-o bem Zé Lezin, tem resposta pra tudo, e pensa ligeiro pra caramba, tornado um contra-ataque quase impossível porque, no mínimo, a resposta do não-matuto vem com o dobro de tempo, o que a faz, mesmo que boa, perder metade da graça. E digo mais: não é só pela malícia com que responde, não é só pela ligeireza da resposta; danada é a falsa ingenuidade que o matuto usa pra desmoralizar o oponente. Ele fala com desimportância, meio leso, muito casual, natural como quem dá bom dia, só na intenção de debochar do cidadão.

Eu, de minha parte, que por quase nada fico acanhado e de cara vermelha, gosto só de ouvir e guardar as sacadas do matuto – nada de atiçá-lo.

Pois bem, segue um causo que ocorreu em minha presença, durante uma oitiva de testemunha:

Um sujeito vinha, lá em Catolé do Rocha, cheio de cana, em cima duma motinha daquelas de tanque quadrado e placa amarela. Ele estava sem capacete nem nada, que por lá e acolá dos sertões as motos substituíram jumentos e cavalos, mas o capacete não fez o mesmo com os chapéus. E ele vinha enfiado na carreira pela rodovia quando, depois de uma curva, deparou com uma carroça. A moto não tinha freio, o condutor não tinha reflexo, e a carroça (guiada por outro bêbado) não tinha que estar ali.

Deu-se o óbvio: moto por baixo, motoqueiro pelos ares, hospital, óbito e menos um matuto a mais, e mais um matuto a menos.

Acontece que, num roçadinho de beira de estrada, havia um amigo do acidentado, que também era amigo do sujeito da carroça, a capinar, e ele viu tudo.

Intimei-o como testemunha.

Ele chegou à delegacia, matuto clássico: bigode riscado, chapéu, fala econômica, todo encolhido, olhando pro chão, com uma RG de 1975 no bolso da frente.

- Por favor, sente-se.
- Sim sinhô.

A escrivã tomou seus dados etc., e eu fui ouvi-lo pra saber do acontecido.

- Mestre, vamos direto aos fatos. Como a coisa se deu?
- Dotô, o cabra da moto, cumpadi meu de infânça, vinha todo coisado, rabianu a moto quinem doido, e estatelou-se por riba da carroça, dispois que fêiz a cuiva.
- O senhor acha que ele vinha bêbado?
- Avimaria! Pelo jeito, é coisa certa.
- Ok. E o cabra da carroça, vinha bêbado também?

O matutinho parou, olhou pro chão, interrogativo e lamentoso, e disse:

- Dotô, o cabra é meu amigo de infânça também...
- Sim, mas eu quero saber se ele estava com sinais de bebedeira...
- Maizi ele subriviveu...
- Eu sei, mas é importante eu saber desse fato, entende?
- Maizi, e eu vô fala dum cabra meu amigo?
- Ou isso, ou o senhor responde pelo falso...
- Então, dotô, eu só vô dizê uma coisa só que arresponde o que o sinhô qué, aí o sinhô vê...
- Diga.
- A carroça, dotô delegado, vinha guiada pelum burro...

Eu parei e olhei pro cidadão, primeiro com raiva, depois com uma profunda admiração. Não tive mais como fazer nenhuma pergunta. Encerrei a oitiva, apertei-lhe a mão com reverência, e fiquei, alisando a gravata, a contemplar meus pensamentos previsíveis, repetindo: “como é que pode?”

sexta-feira, 29 de junho de 2012

O velhinho do poodle (cotidiano)


É aquela velha sina, repetida, sabida, batida, manjada, mas nunca bem digerida: todos envelhecemos, e todos haveremos de morrer.

Claro que, se morrermos como dizem os materialistas purinhos, não haverá drama porque não haverá memória de presente nem passado, nem rastro de futuro, nem haverá escuridão nem solidão, nem dor nem nada dessas coisas que pertencem à consciência e que, contraditoriamente, a literatura gosta de dizer que haverá depois da morte, negando a própria tese de morte absoluta que, ocorrendo, transforma o morto, do ponto de vista dele mesmo, em algo que jamais existiu, e nada pode sentir, inclusive o silêncio e o breu. Nisso não creio, nem também creio no Deus que nós inventamos, vaidoso e violento, fã da adulação e da humilhação (um misto de deputado e senhor de engenho), mas isso é assunto para outra crônica e... Eita, cadê o velhinho do poodle? Fiquei aqui filosofando e ele passou por mim... Vamos atrás dele!

Lá está o velhinho, o que vejo sempre, às cinco da manhã. Lá vai ele, de tênis e meias sociais marrons até o meio da canela, com a bermuda do pijama e camisa polo. Na cabeça, um boné do chinês e, na cara, de barba malfeita, os óculos pendurados pela cordinha. Na mão (lá vem a parte mais triste!), uma corda lilás, fina, na ponta da qual anda, rebolando, saltitando, um poodle mimado e de salto-alto, o único cachorro no mundo que tem nojo de farejar. Para piorar o desastre, o velhinho carrega, na mão livre, um saco plástico, para apanhar o cocô do cãozinho afrescalhado...

Claro que, se o velhinho está lá, fazendo aquilo, é porque no apartamento existe uma velhinha maquiavélica, que certamente esfrega as mãos e sorri, num gesto de vitória, depois que ele bate a porta. Supõe-se, então, que a vida toda daquele velhinho foi carregar poodles, sejam eles cães ou não: os poodles-esporro do patrão, os poodles de cimento da rotina, os poodles sarnentos da inveja, os poodles castrados do desamor, os poodles em fila do empréstimo consignado, e por aí afora, essa “matilha” vergonhosa.

Dá vontade de apertar a gola dele e dizer: “Filho de uma égua! Veja aí pelo mundo, quantas opções de ser: o velhinho paquerador do supermercado, o velhinho atlético da beira-mar, o velhinho viciado em dominó e telenovela, o velhinho trabalhador compulsivo, o velhinho cachaceiro, o velhinho artista retardatário, o velhinho universitário, o velhinho apaixonado pela velhinha, o velhinho fissurado no automóvel, o velhinho de banco na calçada, o velhinho criador de passarinhos, o velhinho jardineiro, o velhinho reformador da casa, o velhinho saudoso da 2ª Guerra , o velhinho motociclista etc. etc. etc., e você, miserável, opta por ser o velhinho do poodle!”

Sei não, fico bravo, fico tenso, fico com vontade de passar com o carro por cima do cachorrinho!... Olhe-olhe-lhe, que o negócio da gola é sério mesmo, e eu só não o faço porque, vai que esse poodle vira homem e morde meu calcanhar!...

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Voo capenga (cotidiano lírico)


Outro dia, sentei-me num banco de praça, no centro da cidade, para esperar, em tique-taque, a semana chegar ao fim. A tarde caía, e as pessoas se agitavam para recolher barracas, tomar lotações, fechar lojas etc. Era o céu se amenizando e a gente se agitando; era o tempo se adocicando e a gente se azedando; era, enfim, aquele baita contraste que nos enche de poesia e tristeza quando o dia vai virando noite.

Bem na minha frente havia um chafariz estagnado, cheio de água suja, repleta de girinos. Pensei: aí está um monumento adequado ao seu entorno: água suja para um mundo sujo; animais sem identidade (o infeliz do girino nem é peixe nem é sapo) para pessoas sem identidade.

Mais perto de mim, uma “quadrilha” de pombos ciscava sobras pelo chão. No meio deles havia um com um cordão preso aos pés. Dava para notá-lo de cara, porque o danado chamava atenção: andava todo desengonçado, já que o velho cordão lhe embaraçava os passos, e voava meio a pulso, já que o velho cordão lhe desajeitava o voo. Em virtude dessa desvantagem artificial, era o mais magrinho de todos, pois tinha de se contentar em comer sobras de sobras. Além disso, seus olhos eram esquivos e distantes.

Fixei a vista nele um tempo, e de repente meu coração cresceu, meus olhos se encheram de lágrimas. Fiquei todo encabulado, dramático, e tive de sair dali, para que não pensassem que eu era algum suicida urbano ou vítima de um desembesto de dor de cotovelo.

Fui a um boteco. Entrei apressado, nem vi nada direito. Pedi uma mesa nos fundos, depois do banheiro, já no quintal, debaixo de uma mangueira antiga, e entornei uma dose de cuba-libre. Pedi mais uma. Acendi um cigarro, pensando no diabo daquilo que me havia acontecido, na razão daquela súbita e intensa comoção…

Demorou, mas entendi: como aquela avezinha, sou eu, pobre cidadão da vida, e o cordão que trago atado aos pés é essa sensibilidade para com tudo, que não me deixa caminhar entre iguais sem tropeçar, e nem voar me deixa, e me emagrece das coisas da vida dos homens.

É isso, meu choro é isso... E essas palavras, se não param pelo cordão, se espalham pelas calçadas, marquises e telhados, feito as penas do pombo enganchado em si mesmo.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

O tatu de chuteira (cotidiano cômico)



Pense numa coisa que me dá gosto na vida: sentar com o povo e ouvir o povo falar, ou ouvir falar do povo. Graças a Deus, fui criado na geral, na maloqueragem, na mundiça, na rafaméa, e meus amigos e parentes quase todos também o foram. E parece que dei sorte, porque quase todos também parecem apreciar a tradição oral da fuleragem. Então, ou aprendo ouvindo, ou de ouvir dizer. O que digo agora, por exemplo, meu irmão foi quem viu e me contou.

Lá vai:

Diz que, numa usina de cana em que trabalhou, havia um velhinho miúdo, funcionário antigo, muito safo, daquela raça de gente sabida que se faz de doida – a pior que tem. Esse sujeito, cujo nome não lembro (vamos chamá-lo de Zezinho), andava numa moto branca muito velha, toda desmantelada, danada pra fazer fumaça e zoada, mas que ele chamava, com todo o carinho do mundo, de Lavandeira. Essa moto pertencia à frota da usina, e quando chegou a hora de renovar a dita frota, Zezinho não se desfez da bichinha nem com a moléstia. Bateu pé. Havia criado um apego da bexiga por ela, e porque Zezinho era verdadeiro patrimônio cultural da usina, a direção, excepcionalmente, permitiu que ele ficasse com Lavandeira, isso na época e em todas as renovações de frota que daí se seguiram. Diz que estavam lá na usina todos os funcionários de motos novas, e o velhinho fazendo estrondo e poluição em Lavandeira pelos canaviais afora.

Um dia, porque chovia muito, passaram um rádio pra ele:

– Atento, Seu Zezinho!
– Zezinho na iscuta; prossiga, meu fio!
– Vá até o canavial no pé da mata, e veja se tem condições do caminhão subir a ladeira…
– Copiado, sinhô… Copiado, sinhô… Vô pegá “Lavandêlha” e vô pro setor …
– Poooositivo...

E seguiu ele, em alta velocidade, rabeando pelas poças, com Lavandeira pipocando e largando fumaça preta e nacos de barro aos borbotões.

Chegando lá, Zezinho viu que a ladeira era um lameiro só; que não dava nem pra Lavandeira subir, quanto mais um caminhão! Botou o capacete “por riba” da testa, fez uma pose de artista sobre o assento da máquina, sacou o rádio e mandou:

– Atendo base; Zezinho chamando…
– Na escuta, Seu Zezinho. Prossiga...
– Meu jovi, desloquei com “Lavandêlha” pro setor. A ladeira tá muito lisa, muito lisa; dá não; dá não, meu chefe…
– Muito lisa mesmo? Nem um caminhão descarregado sobe?
– Homi, iscuti a voiz da expiriênça! Pelas minhas conta, nem um tatu de chuteira sobe essa subida, avalie um caminhão!…

Claro que a explicação foi indiscutível (quem haveria de discordar?), e o caminhão permaneceu na garagem.

Agora, senhores engenheiros, mando o desafio: inventem uma definição de eficiência em tração e atrito, em três palavras, melhor que “tatu de chuteira”!

Dá não, meu chefe! Câmbio e desligo...




sexta-feira, 8 de junho de 2012

O casamento é uma droga (cotidianíssimo)



Neste feriadão, minha mulher e minha filha viajaram. Compromissos profissionais me mantiveram em Recife.

Não nego que fiquei numa baita alegria: a casa só minha, os livros, os discos, a boemia solitária, o silêncio e a meditação – uma folga pro operário!

Deixei-as na rodoviária e parti, cheio de planos na cabeça: vou ao cinema, vou cozinhar, vou ler, vou ver meus documentários, vou tomar um pileque de testa comigo, ouvindo músicas naquela sequência desordenada que só eu curto e, sobretudo: vou me amancebar com o sofá!

Cheguei do trabalho, fiz uma faxina, tomei uma ducha, preparei uma bebida, botei música pra tocar, inventei umas receitas malucas, larguei-as no fogo, acendi um cigarro, sentei-me no meio da sala e comecei a pensar na vida... Olhei pra cidade noturna, peguei a “cuba-libre”, levantei um brinde e dei uma golada enorme, tragando fundo a cigarrilha na boca gelada, suspirando: “ a vida é bela...”

Começou a vir chuva, e lembrei que as janelas estavam abertas.

Entrei no quarto da minha filha, e vi ali seus brinquedinhos, suas cartinhas escritas com aquelas letrinhas doces de quem ainda desenha as palavras – o que é infinitamente mais bonito que escrevê-las. E também suas roupinhas, os sapatinhos, os diademas cor-de-rosa... Bateu uma tristeza tão desmantelada! Veio aquele acalanto íntimo, aquela ânsia de bobão que dá na gente pra dizer: “minha bebezinha, meu denguinho, princesinha do velho...” Mas me contive, dei em mim de cotovelo: “calma, cara, isso é bobagem... são só uns dias; deixe de frescura e vá curtir!” Fechei as janelas, tranquei a porta e fui ao quarto de casal, onde estavam a cama bagunçada (molhada só de chuva) e o guarda-roupa fechado que, contra todo o bom-senso do mundo, decidi abrir. E lá havia mais desengano ainda, essa coisa toda da ausência feminina: os cintos sem cintura, os perfumes contidos, os sapatos sem direção, a maquiagem em estado de pedra, os vestidos sem alma (pense numa coisa melancólica, um vestido sem mulher dentro!)... A garganta travou. Pensei: “vou pra cachaça, acabar com essa moleza!” Virei uma dose, botei um sambão no DVD e ainda tentei, com meu molejo de “Coisinha de Jesus”, dar um passinho, mas lembrei logo (quase escuto no ar!) que o certo, o lógico, o bacana, o esperado seria, naquele momento, as duas zombando do meu patético desengonço, e logo depois (mulher troca de humor depressa!) a mulher a recomendar moderação na birita, reclamando também da bagunça, do cheiro de fumaça, da altura do som, e a filhinha, docemente mas com gravidade, a imitar as palavras da mãe, seus gestos, seu tom, imitando também o meu passo torto, tirando onda, surrupiando tira-gosto, bagunçando a casa mais que eu... Disfarçadamente, a mulher olharia pra tudo e sorriria.

Feriado cacete. Feriado sem graça. Passa logo, tempo desnecessário!

(...)

Meus amigos, meus irmãos, homens que ainda têm olhos na cara, não sejam idiotas feito este escritor que pra aprender tem de levar uma lapada: o homem só é só a solidão, e estando só ele não vê o mundo, porque não ama pra ver e ser visto. O homem só não existe, ele é menos que ninguém, porque o ninguém, pelo menos, não mete os pés pelas mãos, não desfaz a beleza.

Tenham gente pra dar cuidado, porque cuidar de si e de si apenas é a coisa mais mesquinha e sem sentido; e é coisa que desagrada à Vida, coisa que nos transforma em mera peça de mobília.

Sim, o casamento é uma droga, uma droga que cura o homem do desespero e da solidão, disse-o bem e mandou na veia aquela antiga canção.


(A quem interessar possa, a canção é esta:
http://www.youtube.com/watch?v=2N4U9pUmbxY)

sexta-feira, 1 de junho de 2012

O homem médio (cotidiano doce)



Quando eu era menino, pensava que toda a gente adulta era sabida em tudo, e que as crianças eram um bando de irresponsáveis que poderiam desmantelar o mundo, se dele se apossassem. Já adolescente, passei a pensar diferente, e a achar que o ser humano se dividia em classes mais ou menos definidas, no que diz respeito à grandeza individual. Pensava que havia, de um lado, os magníficos, como um Cristo, um Einstein, um Da Vinci, e, de outro, os homens médios, grande massa do planeta. Mais abaixo, em número proporcionalmente bastante reduzido (mas que fazia grande estrago), estavam os idiotas completos: nazistas, fanáticos religiosos, ultramaterialistas e outros do tipo.

Cresci com esse negócio plantado fundo na cabeça. Mas o que mais me interessava era entender o homem médio, o homem geral, o homem da rua, com quem convivia, e o que era minha tendência, hoje confirmada. E, juntando o que eu via, o que lia, o que me ensinavam, eu criei, com base num jogo de equilíbrio, um perfil desse homem médio que, creio eu, é bastante preciso, ou, pelo menos, bastante justo. É o seguinte: o homem médio é aquele que crê na Inteligência Superior, e que às vezes, com um baita esforço, consegue observar a grandeza e o equilíbrio das coisas, o toque artístico na composição dos seres vivos, a filosofia do cosmos, a presença do Abstrato. Por outro lado, entende também, e com a mesma limitação de acima, a coerência da teoria científica pura, da criação espontânea das coisas; às vezes duvida do acaso que supostamente as gerou (acha acaso demais), como duvida das próprias chances de ganhar na loteria (embora seja apostador assíduo), mas se deixa seduzir, também, pela lógica da tese, ora achando-a exageradamente incompleta, ora achando-a perfeita. Assim, tem medo da morte e tem amor pela vida, sob qualquer ponto de vista em que se coloque. Mas esquece de todo esse filosofar se diante de uma cerveja gelada e uma partida de futebol, ou de uma mulher bonita que passe, ou de um samba que role, ou de tudo junto. Politicamente, tende à esquerda, desde que esta não apresente nada além de “revolução, mas devagar”, ou tende à direita, desde que esta não apresente nada além de “conservação, mas devagar”. Tem seus cinco ou seis autores favoritos, em literatura como em música, e acharemos entre eles os médios e os brilhantes artistas, que ninguém tem neurônios de ferro. É confessional, admite as mancadas que dá, salvo as mais cabeludas. É materialista, gosta de grana, mas não nega um empréstimo a um camarada, embora possa, às vezes, fazê-lo com lágrimas nos olhos, já saudoso da cifra que tem um só “V”. Sonha em ficar rico, claro que sim, mas muitas vezes desiste da empreitada ao calcular os juros que a demanda cobra. Vive bem como remediado, viajando em sonhos, exibindo as joias do cotidiano – mas, claro, sem deixar de fazer sua fezinha, pontualmente. É, enfim, uma bela criatura, digna de muita admiração e de alguma pena; alguém em que as palavras “amigo”, “compadre”, “camarada”, “companheiro”, “irmão” cairão sempre como luvas, o que é ser muito mais humano que ter só virtude ou defeito.

Mas, para minha total desilusão, o tempo passou, minha geração criou-se adulta, e vejo que o homem médio por mim suposto é uma baita fantasia, uma conta de exceções. As mesas de bar, as praças, os aniversários, os jogos de futebol em companhia dos homens médios são apenas imagens de um inalcançável sonho ingênuo – diria mesmo, uma utopia. O homem médio que vejo prevalecer hoje, na minha geração e nas que dela se aproximam, não é bem assim, não é nada assim. Ele é o seguinte: vê a Inteligência Superior, a que chama Deus, como um velho carrasco e egocêntrico que pode meter-lhe a chibata ou dar-lhe uma Ferrari, conforme seja o homem médio um bom ou mau bajulador. Não filosofa, não pensa sobre a existência, nem mesmo se em estado de pileque. As teorias de criação do universo ou surgimento da vida são meras chatices que teve de aprender para passar no vestibular, formar-se e ganhar dinheiro, que só empresta a juros, apesar de se gabar de tê-lo em abundância. Só lê livros que tenham utilidade, e para ele reflexão não é utilidade, utilidade é ganhar dinheiro e acumular coisas para mostrar ao vizinho, pois essas coisas só têm valor se os olhos do vizinho as medirem – conforme demonstram algumas propagandas de TV, que vendem suas coisas chamando os clientes de medíocres invejosos (ativos ou passivos) do sucesso alheio. Ouve a música que tocarem, e acha tudo bom, pois a música é apenas um barulho a mais, dos que sempre nos cercam enquanto vivemos e tentamos ganhar dinheiro para provar aos outros que somos igualmente iguais. Politicamente, de duas uma: ou não gosta de política, e não por ideologia (que nem sabe o que é), mas porque é legal, é popular dizer-se essa frase: “eu não gosto de política...” Ou é o próprio parasita político: o assessor eterno, o candidato eleito, o rastejante do discurso, o sabido sem opinião, cujo partido é o sem ideais, o da hora, o da vantagem. É, quanto ao ego, o herói, o que não erra, o que tem amigos influentes (por exemplo: pode livrar uma multa de trânsito, descolar um porte de arma de fogo etc.), o que tem amantes debaixo do nariz da esposa, o grande piadista, o antecipador das tendências, o motorista sensacional, o guia da Europa, o entendido de câmbio, o confidente do prefeito, o especialista em vinho, o que sabe dar nó clássico em gravata etc. etc. etc. Enfim, não é digno de admiração nem de dó (só um santo teria dó por alguém assim, e não estamos vivendo um tempo santificado); ele só anima em nós um sentimento forjado em plástico, algo sem coração, como quando vemos um boneco do Ken, um ídolo sem talento, um despachante da bolsa de valores, um alucinado por moda, um fã-clube de “teenagers” e por aí afora. Ele é, Pai do céu, a coisa mais sem graça que jamais se viu; e é ele que (sinal da cruz), por existir em maioria, cria o ambiente das cidades...

Mas não é só isso!, como diriam os vendedores da TV por assinatura. Há os outros lados da questão, que você recebe totalmente grátis, e com os quais finalizo minha análise:

1) a elevação da autoestima dos antes chamados idiotas completos, que já podem sonhar com outro tipo de idiotice, mais solene, bem vestida e remunerada, e

2) os gênios da História estão gradualmente se tornando figuras quase mitológicas, mentiras e invenções – amanhã, nossos netos, rindo da nossa cara, dirão que Gandhi é tão real quanto Papai Noel, mas que o Superman de fato existiu, foi morto e pregado numa cruz, ressuscitou em forma de país, e que nós tentamos, numa enorme conspiração, esconder sua inescondível existência, mas tudo foi em vão, porque no fim a verdade sempre prevalece.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Livra-me, meu Deus, do DETRAN (cotidiano tragicômico)


Ajoelhando e clamando aos céus:

Maceió, minha terra, é uma cidade tão linda (pausa lacônica)!

Mas, quando eu estiver por lá, livra-me, meu Deus, de precisar ir ao DETRAN…

(sinal da cruz, mãos juntas para a ladainha, pulmões cheios)

Rezando profundamente:

1. “cabrassafadum furafilandum est"

Livra-me, em primeiro lugar, dos fura-filas, e seu jeito reptiliano de locomoção.

Livra-me do cara dura que, acenando falsamente ao atendente, faz que o conhece e se chega, antes de todos, antes da vergonha na cara, e é atendido pelo atendente, que ainda esboça uma reação mas, honrando a lei de inércia, atende-o – até porque a ordem dos fatores não altera a má qualidade do produto.

Livra-me, também, do segurança de Deputado, bruto despachante de Toyota que, austero e ameaçador, antecipa-se à fila e, arrogantemente, paga seu boleto, saindo, triunfante e heroico, a olhar por cima das mulheres, dos aposentados, dos coxos, dos motoboys, dos analfabetos, dos sem-peixe, dos recém-casados, das lactantes, dos donos de fusca, e de toda a sorte de inofensivos e coitados que a vida deu para o mundo criar.

Livra-me, por favor, do fura-filas autoridade pública, o da carteirada, que tem a coluna reta e os olhos caídos; que tem vergonha também, mas tem mais pressa que vergonha.

Livra-me, ademais, da falsa-manca, da falsa-grávida, da freira oportunista, do primo do vizinho, do vendedor de vaga, do que entra pelos fundos, do despachante profissional; livra-me, enfim, de todos os imunes à fila, imunes ao vexame, imunes à vida coletiva.

2. “velhitas malis, quengorosa est; calvum cornalis, piorum est”

Livra-me, ó meu Deus, da atendente de cordinha nos óculos. E se ela estiver lendo um catálogo da Avon, afasta de mim esse cálice! Explica a ela que eu não criei o desamor. Ilude-a, Senhor; faz com que ela creia num namoro novo, que ela sorria, pois que, admito, quando ela espicha as sobrancelhas e olha a papelada por cima daqueles óculos pontudos de trinta anos atrás, arrepia-me a coluna até quase arrebentar a nuca. E se ela leva tudo para os fundos, a consultar sei bem quem, faltam-me até as pernas. Livra-me dela, Senhor, que ela me apavora.

Livra-me, Santo Pai, do homem de peruca a quem a mulher de cordinha nos óculos leva os documentos. Ele é o anatomista da burocracia, o dissecador do detalhe, o assassino da esperança. Ele é o sádico-burocrata-negador, cuja expressão orgástica ante a descoberta de um entrave burocrático seria de enrubescer até o mais despudorado dos antigos romanos. Livra-me dele, desse lascivo, que nos bota para dar viagens sem fim, que nos sonega a verdade a conta-gotas; esse incendiário de gasolina; esse arauto do Viagra; esse homem só língua e dedos…

Livra-me, também, dos diretores, desse tribunal nazista de apelação, no qual já entramos condenados… Livra-me deles antes que eles se livrem de mim porque, Senhor, eles são tão peritos em se livrar das pessoas que é bem possível que, antes mesmo que o Senhor me conceda a graça, eu já esteja na fila de novo, vendo os fura-filas passarem rumo à mulher de cordinhas nos óculos (comparsa do sujeito de peruca) que, indiferente à dor alheia, lê o catálogo da Avon…

3. “inspetorum inspetandum, feladaputatis est”

Senhor, por fim, livra-me, se não forem possíveis os pedidos acima, do cara que passa o carro em revista… Livra-me deste censor da mecânica, deste tarado da lataria, deste crítico da manutenção. Livra-me de vê-lo esfregando as mãos com uma estopa e fazendo um não com a cabeça… Livra-me dele, Senhor, que a este só faltam (se é que faltam) a foice longa e a capa negra, e o corvo fincado nos ombros, repetindo o famoso verso: “nunca mais; nunca mais…”

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Problemas de interpretação... (cotidiano cômico)



Final de semana passado levei minha filha ao zoológico, pra ver os animais cativos.

Aprendi logo que o cativeiro (talvez salvo pros homens – exceções à parte, que tem doido pra tudo) é um conceito muito relativo no que diz respeito ao conforto.

Há animais que estão, verdadeiramente, acabados, tristes, mofinos, doidos. São, em regra, as aves, os grandes predadores e aqueles animais latifundiários que se sustentam em vastos territórios e migrações fantásticas. Dentre esses há: a ala dos esquizofrênicos, alucinados, que estão em franco delírio prisional. Já outros estão excitados em excesso, revoltados a bater nas barras, grunhindo sua rebeldia, seu inconformismo. Outros estão simplesmente vencidos pela depressão – feito o leão que, pra engravidar uma fêmea, copula algumas dezenas de vezes; o do zoológico enviuvara, e não lhe restava consolo na vida, nem o “fazer justiça com as próprias patas”, haja vista as afiadíssimas garras: era, o pobre, um grande espartano melancólico.


Por outro lado há uma bicharia alegre. São as caças, as presas, as refeições, e o proletariado da selva: pequenos roedores, répteis (acho que por causa do sangue frio), ruminantes e outros que tais. Esses, fora do alcance dos dentes alheios, parecem zombar dos visitantes, estufando seus vulneráveis peitos com exagerado orgulho e indisfarçada sensação de invencibilidade.

Mas, puxando pelo título desta crônica, vim falar de problemas de comunicação. E, primata que sou, desentendi-me com outro primata.

Explico:

Passávamos pelas jaulas dos macacos (babuínos, macacos-prego, macacos-aranha – este, o bicho mais sem-vergonha que existe, brasileiro nato e honorário – e outros mais). Numa jaula do canto, havia dois macaquinhos amarelos, cabeçudos (cearenses, desculpem, mas lembrei de uns amigos) e brincalhões (cearenses, é isso mesmo). Não sei da raça, nem da idade, mas achei (acho, sei lá), que eram apenas filhotes. Bem, o fato é que assobiei pra um deles, que espichou os olhos pra mim. Fiquei todo orgulhoso porque, quase sempre, eles não dão bola pra visitante qualquer. Pensei: pô, eu devo ter um dom de comunicação único! Continuei assobiando, fazendo gruídos, barulhos finos, e ele me encarava, balançava o corpinho, atento, quase bípede. De repente, saltou prum galho, balançou-se numa corda e agarrou-se à tela num salto cinematográfico, olhando-me com vivacidade. As pessoas ficaram admiradas; minha filha encantou-se. Mas, pobre de mim, que me iludi! Quando fui ver, o macaquinho, a me encarar, dentes arregalados, boquinha aberta, fazendo mil caretas, exibia uma baita ereção… Puxa vida, só aí notei a carinha de tarado dele! O pintinho balançava, subia e descia, apontando em minha direção! Risada geral e eu, humilhado, mal interpretado, passei, a passos pesados, rumo à jaula do hipopótamo, que estava submerso, indiferente, e não oferecia risco ao meu pudor.

É nisso que dá inventar de falar um idioma que não se conhece.


sexta-feira, 11 de maio de 2012

O coqueiro é alto e o jumento é ligeiro (cotidiano cômico)

“Todo homem tem algo a me ensinar,
e nisso eu sou seu discípulo.”
Emerson



O dia é sexta-feira. E é fim de expediente: tarde caindo, a vontade de beber subindo.

Lá em Maceió, na construção dos apartamentos que meu irmão está levantado, o conjunto Fabrizziópoles, juntamo-nos à peãozada pra beber. Rara ocasião em que ele, Fabrizzio, paga algo pra alguém.

E é rara, também, por outros detalhes, que aliás são o principal: o tira-gosto fervendo na panela preta e amassada, com lenha que é sobra de construção. Não sei o que diabo vai ali dentro (e nem é bom saber), mas a delícia que sai daquela mistura é de morder até os dedos, se o cabra se descuida. Tem a cerveja geladíssima, em quantidades industriais, e uma caninha de lambuja. Sentamos em bancos T (um tijolo em pé, outro deitado), ao redor da mesa de zinco, pra escutar Cabravéi falar.

Cabravéi, o mestre de obra, um anjo de gente, um monstro de trabalhador, um gênio da narrativa, de olhos verdes e acesos sobre um bigode que é só aquele risquinho. Muito esperto, com seu chapéu preto de grandes abas, sua cara galega queimada e, acima de tudo, sua inteligência rara pra levantar imagens que, confesso, ficarão incompletas neste texto, que é mais homenagem que reprodução, pois ele falando dá de dez.

Já na primeira vez que participei dessa reunião virei tiete.

Sentei-me ao lado de Cabravéi, quando um pedreiro começou a falar:

- Mais hômi, vocês num sabe é di nada! Eu já vi um mamuêro que tinha, só num lado, 180 mamão! Isso sem contá os que tinha do lado di trás, que num deu tempo di contá...

Cabravéi arregalava os olhos, fazia que se levantava, com uma cara indignada.

Eu pensava que ele estava revoltado com uma mentira daquelas, mas não: ele estava com raiva porque o cabra estava mentido mais que ele, que, afinal, era o mestre da obra!

E o cabra ia falando, e Cabravéi olhando sem desgrudar, pegando ar, e me dando cotoveladas, uma mais forte que a outra, enquanto murmurava pra mim:

- Piamermo, piamermo; piamermo...

Quando o outro terminou, o Cabravéi aprumou-se no tijolo, estufou o peito e mandou:

- Maxtá... Vocês sabi é di nada! Num anda, num vê o mundo! Esse aí mermo, vêi de Parmeira dos Índio numa inxurrada, caiu in Maceió e pronto, ficô... Hômi, eu vi foi um coqueiro, assim grandão, que o cabra subiu nele cum 16 ano e vortô pusentado do INSS! Isso falano di pranta, que, falano di bicho, eu já vi um jumentinho na carrêra, se cagando todo com medo di lubizômi, e com duas cangaia nas costa, fazê um cuiva tão ligêra, mas tão ligêra, mas tão ligêra que quando ele parô, e fôro dá fé, a ruma di merda tava intêrinha dentro da cangaia!

Risada geral, e Cabravéi fazendo cara de sério, sustentando a versão vírgula por vírgula, sem abrir nem pra um trem desgovernado...

Pra não me alongar demais, vou deixá-los só com esse aperitivo. Mas, o melhor (ainda) de Cabravéi está por vir, em breve, neste blog.


Inté!

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Autocrônica (estilo cotidiano)


Um dia desses sentei-me pra beber comigo. Pablo e Pablo. Olhos nos olhos. Dois copos de bebida. Duas carteiras de cigarro.

Estava de mau humor, e repreendi o Pablo severamente. Esfreguei nas suas ventas as suas fraquezas, os seus erros, a sua mediocridade.

Ele acovardou-se, calado, cabisbaixo. Timidamente, argumentou que nunca teve intenção de estragar as coisas; que seu coração é bom; que quis acertar, mas falhou…

Retruquei que intenção não basta, que ele teve mil chances e as desperdiçou, e que bebeu muito, gostou de mulher em excesso e vagabundeou demais!

Já com lágrimas nos olhos, ele disse que era difícil ouvir aquilo tudo, que seu coração estava despedaçado. Disse que um dia acreditou que aquele era o caminho pra amizade, pro amor, pro proveito do tempo; mas que via, agora, a droga em que tudo deu, pois estava sozinho, triste, inerte, enxovalhado.

Fui mais além, e falei de tudo o quanto ele poderia ter sido, e não foi. E que era tarde. Que seu destino estava traçado: “Pablo, disse eu, você foi um baita burro!”

Ele juntou as duas mãos e as enlaçou, e elas tremiam e, feitas em concha, ele deitou sobre elas a cabeça e chorou até a vermelhidão, lágrimas abundantes, soluços sentidos, arrependimento sincero. Quando isso aconteceu, quando o vi daquele jeito, deu-me uma melancolia, meu coração cresceu, meu queixo tremeu-se todo!

Olhei-o, ali, o pobrezinho: meu querido Pablo, meu doce Pablo, meu Pablo sofrido… Amo-o tanto!

Acolhi-o feito um bebê, e juntei suas lamúrias em meus braços, em meu peito confiante. Alisei seus cabelos, beijei sua cabeça e disse: “Calma, Pablito… Me desculpa. Vamos recomeçar, tá legal? Você ainda pode!”

Mas, cá pra nós, acho que o Pablo é um caso perdido…