Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Orai por mim, ou: “Ave-Nosso que estais na graça...” (crônica policial. estilo: cômico)



(Esta crônica foi feita com a colaboração de
Rodrigo Sarmento de Carvalho,
testemunha dos fatos)



Lá vinha ele, desembestado ladeira abaixo!

Era uma ladeira de calçamento, não muito íngreme, mas o infeliz vinha num aspecto de carreira incrível: a Barra Circular 86 gemendo, os para-lamas estalando e os retrovisores (que de retro já não tinham nada) enfiando luz na cara de todo mundo!

Pilotado essa máquina vermelha, o chumbeta Zé Cupim: os braços duros, a cara trepidando, as pernas escapando de quando em vez dos pedais e se abrindo como que para uma improvável decolagem.

E, de duas três: ou o infeliz era mais sortudo que João Alves, ou tinha um santo mais forte que Pedro, ou era um dublê sobre duas rodas, porque virava de banda, raspava a calçada, ziguezagueva entre os buracos, tirava fino num caminhão, ratava de pedaleira, fazia que ia e não ia, mas sempre voltava ao prumo! Tudo, claro, na maior elegância, tocando a “sirene” pras “moçoilas” e às vezes até, no ápice da ousadia, tirando uma das mãos do guidão e cumprimentando o povão.

Chegando à delegacia, fez a última evolução, estacionou a máquina e, cheio de estilo, deu de calcanhar no tripé cromado. Penteou a cabeleira, ajeitou os óculos “Istalonicroba”, suspendeu o cinto de fivela de vaqueiro e abriu o terceiro botão da camisa estampada que, por erro de contas, havia deixado preso, escondendo o medalhão de São Jorge.

Entrou na recepção, estufou o peito e saudou seus “colegas” agentes de polícia:

- Bom dia, senhores!

E os canas:

- Êita bafo de aguardente da porr...!
- Pu... mer..., Zé Cupim, caísse num barril de “mé”, porr...?

E o chumbeta, checando os arredores por cima das lentes, sussurrou:

- Pssss... Na moita!... O delegado tá aí?...
- Vem hoje não. É segunda-feira, tá esquecido?
- Ufa!... É que ontem teve o enterro da dona Maria Bendita.
- Maria Be-ne-di-ta!
- Perdão, Maria Bendi-ta... Aí, você sabe, eu só fui em consideração à família e coisa e tal, e tal e coisa...
- À família da garrafa?
- Olhe a heresia! Eu sou conhecido do pessoal, vocês sabem. Mas, por um acaso, o pessoal achou de beber o morto e, como minha emoção era grande...
- Sei. Do jeito que você gosta desse povo, ou você morre do coração ou de cirrose, porque vai gostar de furar cachaça em velório assim na casa de mamãe! É pecado, rapaz!
- Que é isso! Olha o respeito!... Ei, me arrumas um real pra eu comprar de pão?
- Daquele que é transparente e vem engarrafado, com rolha e tudo?
- Mas vocês não têm jeito!

Sentou-se e acendeu um cigarro.

- Corre que vai explodir!
- Olhe a brincadeira, assim os vagabundos não respeitam minha autoridade, porr...!
- Escuta, Zé, eu soube que seu Tristão tá muito mal. Mais pra lá que pra cá...
- Não diga! Digo: pobrezinho, conheço demais!
- Parece que de hoje não passa.
- É fogo!
- É, literalmente pra você: é fogo!
- Olhe a brincadeira, eu também sou agente da lei, caral...!

Pois não é que o policial estava certo! Naquele mesmo dia o senhor Tristão, médio comerciante local, a quem Zé Cupim jamais conheceu e viria jamais a conhecer, faleceu. No dia seguinte beberiam o defunto no velório, costume que, pra sorte de Zé Cupim, ainda é frequente em alguns interiores desta terra alagoana, como naquele em que o digno chumbeta morava.

Zé Cupim era sempre diplomático ao chegar ao velório:

- Bons dias! Venho representando o senhor delegado de polícia desta circunscrição...

Todo mundo já sabia que era, como se diz, “migué’ do Zé Cupim, alcoólatra inveterado, daqueles de braço fino, bigode riscado, canela seca, bucho protuberante e papada lustrosa: biriteiro desmoralizado que vivia de pedir coisas em nome “da delegacia de polícia desta comarca”.

No caso deste velório, Zé Cupim conhecia uma conhecida da empregada doméstica do senhor Tristão, que lhe deu o serviço todo: início às 09h30min. Menu: mariola, café, água e umas cinco garrafas da cobiçada cachaça (com um “plus”: era cachaça-de-cabeça!), fora outras especiarias. Proibido entrar de bermuda.

No dia do velório, Zé Cupim vestiu suas botinas e uma “beca legal”, como usava dizer. Montou na máquina e dirigiu-se à casa do finado, mas não sem antes passar na delegacia pra se gabar aos policiais.

Entrou, muito posudo, pegou a extensão do aparelho de rádio velho e quebrado, e começou a tirar onda:

- Atento delegacia de Cutia do Norte; atento delegacia de Cutia do Norte! Aqui é o Zé Cupim anunciando que vai a um comes-e-bebes de graça, enquanto o pessoal daí trabalha; tsssc-tssssc, atento!
- Óia, tá tirando onda, né, safado?! Pois a gente ia lhe oferecer essa meiotinha de cachaça aqui que a gente tava bebendo, mas num vamos mais!
- Que é isso, pessoal! É brincadeirinha...

Realmente, aquela terça-feira começava bem pro Zé Cupim: um “mé” logo de entrada, outro à espera, e esse de agora ainda ia ajudar a tornar a performance dramática mais verossímil lá no velório.

Acontece que Zé Cupim se empolgou: ainda de barriga vazia, tomou a “meiota” em três goladas fundas. Limpou os beiços, agradeceu, subiu na máquina e danou-se a pedalar. No meio do caminho a infeliz fez efeito, foi do bucho direto por quengo. Ele desequilibrou, ia decolando umas três vezes, mas manteve a boa sorte e conseguiu chegar ao destino.

Retirou os óculos, com estilo e sentimento, pendurou-os na corrente prateada e ficou junto ao caixão, mudo e profundo, sentindo o doce efeito do álcool se espalhar pelo sangue.

Daí a cinco minutos, mexendo só os pés, ele se afastou lentamente, o olhar arrasado. Chegou à mesa, tomou uma lapada, mordeu um pedaço de mariola e pôs-se na varanda, cigarro aceso, a meditar olhando pro horizonte, como se pensasse no defunto:

- P... m..., essa cachaça é da boa... Gente fina é outra coisa...

Voltou a ladear o caixão, mas no caminho de volta engoliu outro tanto. Fez que ia beber água, errou de garrafa e entornou outra dose. Foi lamentar-se a um altar que havia na sala, e enquanto se benzia virou mais uma lapada.

Chegou o padre.

O pessoal se alinhou de frente pro vigário – claro que Zé Cupim aproveitou a distração geral pra beber outro golinho-de-nada, e mais um de quebra.

O padre preparou a cerimônia, proferiu uns salmos e a ladainha começou.

Zé Cupim posicionou-se perto de uma cadeira, apoiou-se nela com a mão, meteu a outra no bolso, cravou os olhos no chão e estampou uma profunda expressão de fé e desalento.

Disse o padre:

- E agora, vamos rezar a oração que nosso Pai nos ensinou!

E o coro:

- Pai nosso que estás no céu...

Sendo que o Zé Cupim, apoiadinho como estava, e já de olhos cerrados, deu um levíssimo cochilo (só o biriteiro profissional domina a arte de dormir em pé), bem no comecinho do Padre-Nosso, e só acordou quando começou a Ave-Maria.

O coro seguia:

- Ave-maria...

Mas o Zé Cupim:

- Que estás no céu...

E o coro:

- O senhor é convosco...

E o Zé Cupim:

- Venha a nós o vosso reino...

Três ou quatro beatas olharam de banda, com aquele enjoo da censura.

O coro seguia:

- Bendita sois vós entre as mulheres...

E o Zé Cupim:

- Assim na terra como no céu...

O pessoal já começava a esquentar a cabeça.

O coro:

- Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus...

E o Zé Cupim:

- E perdoai as nossas ofensas...

O constrangimento já era indisfarçável.

O padre interrompeu a reza e danou um sermão:

- Filho de Deus, nós estamos na Ave-Maria...

- Então fud.., porque eu já tô pra lá de Bagdá!

O que se viu depois foi o pobre Zé Cupim rolando das mãos dos filhos do finado pela escada abaixo, junto com sua máquina vermelha, ambos amassados e incapazes de se locomover.

Dizem as más-línguas que, antes de adormecer ali mesmo, na calçada, abraçado à Caloi, o desventurado auxiliar da lei sussurrou: amém!



sexta-feira, 20 de abril de 2012

Do terno e gravata, e de outros desgostos (crônica estilista)






Outro dia eu assistia a um documentário sobre moda (com minha cara de retardado), quando um estilista (o estilista moderno é uma mistura de costureiro e artista plástico) gordinho disse algo que me deixou profundamente chocado. Perguntado sobre a escandalosa magreza das modelos, ele cruzou os braços, apoiou o queixo na palma da mão e tacou: “Elas são assim porque o destaque é na roupa; elas são meros cabides…” e riu sarcasticamente (ou o sarcasmo pertencia à minha perplexidade, sei lá). Aí eu me revoltei, quase engasgo: homi, eu nunca vi o acessório ser mais que o principal! Veja o absurdo: estamos falando de beleza e botamos a mulher à parte! A mulher, vocês entenderam? A mulher nada significa pro vestido! Não posso entender um olhar sobre a beleza em que uns panos superem quem a infinita poesia de todos os tempos adora, canta, sublima (e até consome!), por uma futilidade, por algo que pertence à doença estética dos vazios. Não posso entender, também, que mulheres (e essas modelos têm um jeito agressivo que dá até medo) permitam ser o objeto que pertence à roupa e a leva pra passear…

Essa revolta levou automaticamente o meu pensamento a um velho desafeto (este desafeto e eu somos como os duelistas idiotas do conto, que passam anos sem fim duelando inutilmente, sem aplacarem o ódio recíproco e o amor à honra), que se chama o combinado terno e gravata.

Não entendo por que tenho (eu, sujeito calorento; eu, sujeito de se encostar nos cantos; eu, sujeito que gosta de deitar na rede; eu, que sofro de enxaqueca desde a infância!) que, debaixo do sol de Recife, usar uma roupa que é prima em primeiro grau da camisa de força.

Vejam que, pra começar, a gravata já traz em si o sentido de coleira, o que é a submissão do coitado do cara à máquina do trabalho massacrante – por sinal, além de aquecer o corpo, ela diminui o fluxo de sangue ao cérebro, contribuindo pro emburrecimento do indivíduo, o que facilita a aceitação do uso.

Depois, tem-se o paletó, objeto mais inimigo do abraço que há, porque, em seu desenho tosco, tem umas costuras que dificultam erguer os braços e se, mais que erguê-los, abrimo-los, o paletó dispara uma série de mecanismos de contenção, a saber: 1) espicha-se feito asas de morcego (afugenta); 2) as ombreiras se procuram a quase tocar nossas orelhas (ameaça satanicamente); 3) as mangas encurtam e todo ele nos puxa pra baixo de novo, pra reclusão, pro fechamento, pro comportamento, pra solidão outra vez, como uma ordem de “pare!” apoiada pela gravada que, diante do gesto, aperta ainda mais o pescoço da vítima (uso medieval de recursos mecânicos).

As calças do desgraçado não suportam uma carteira sem desengonçar. E encurtam demais quando sentamos, deixando-nos naquela situação ridícula de “o defunto era menor”.

Os sapatos, confeccionados pra pisar em chãos que não se parecem com os chãos que conheço, deixo-os quietos, em respeito a sambistas, sapateadores e outros cujo talento consegue salvá-los das trevas.

Enfim (tô exausto!), se não posso me livrar do terno (ou passo calor ou passo fome), posso fazê-lo quanto à mulher vazia. Posso, além do mais, criticar o casal que passa: ele, orgulhoso, com sua roupa formal, suas ombreiras (salve Renato Aragão!), seu signo de distinção; ela, magra, cheia de quinas, usada por seu vestido. E posso, sobretudo, crer que meus motivos pra usar terno são diferentes dos dele, e que jamais uma mulher daquelas, por melhor que seja a ilusão de sua aparição, de seu perfume e de seus olhos lunares, sentará ao meu lado nesta mesa do café – muito menos num boteco, claro.


Sobre o tema, eu e Chico fizemos este samba: http://www.youtube.com/watch?v=Xw1JVGD0xOA&feature=g-upl&context=G2b5436cAUAAAAAAAAAA

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Receita de costelas de porco ao molho de rapadura (crônica culinária)



Pegue um sábado, um sábado inteiro, livre de preocupações e de ressaca – este ingrediente é importante, mas não é essencial.

Acorde de um sono bom, suba numa moto – pode ser de carro, mas de moto é mais gostoso – e vá às compras, de preferência num mercadão, no meio do povo. Aqui em Recife, gosto de ir ao Mercado de São José.

Compre (pra duas pessoas normais): 1) um quilo de costelas de porco. Pode ser da mais gorda, com pele e tudo (eu prefiro), ou daquelas mais chiques, a vácuo, de um porco criado por vó; 2) uma pedra de rapadura da purinha, sem coco, castanhas nem outra mistura; 3) um “mói” de alecrim fresco; 4) uma cabeça de alho; 5) uma garrafinha de molho shoyo – pode ser da mais vagabunda que tem; 6) um tiquinho de orégano; 7) azeite – do bom é melhor, mas, se não der, pelo menos evite o “óleo composto”; 9) vinagre, e 10) o demais, conforme seus maus costumes: cachaça, cerveja, uísque, cigarros etc.

Fora o item “10”, você não gasta mais que trinta reais, se bater pé direitinho.

Pois bem.

Volte pra casa, sentindo (se de moto) o vento bom refrescar o calor.

Deixe as compras em cima da mesa e tome uma ducha fria: banho quente corta o clima dessa receita!

Volte, buchinho de fora, usando só chinelos e aquela bermuda esculhambada de jogar bola, mas atente: ela deve estar limpa e cheirosa, que roupa velha, quando lavada, é a coisa mais gostosa que há pra vestir.

Ligue o som, volume discreto. Pra começar eu recomendo Bossa Nova, ou um samba de qualidade, mas aveludado: Jorge Aragão, Paulinho da Viola e afins.

Estale os dedos, pegue um copo de bebida, dê um saravá e se prepare pro trabalho.

Se fumar, acenda um cigarro.

Se sua mulher ainda estiver dormindo, antes da bebida e depois do banho, beije-a na testa; se acordada, beijinho na boca. Se você não tiver mulher, esta receita não tem graça; passe-a a quem tenha uma.

Dê um gole. Dê uma tragada. Solfeje a melodia. Comemore: hoje é sábado!

Numa panela, ponha uma xícara de água e a rapadura, e deixe a danada derreter em fogo brando – cuidado que ela às vezes espuma e esborra!

Outro gole. Mais um trago. Assobie a melodia.

Pegue a costela e a prepare, com zelo de sushiman e artes de Ivo Pitanguy pra tirar pelancas. Corte-a em pedaços “marromenos” do tamanho de um pão desses que são vendidos hoje em dia: pequenos prum pão, bons prum naco de carne. Regue-os com vinagre.

Unte uma... como se diz... cumbuca, travessa, fôrma... uma coisa dessas de ir ao forno com azeite, e bote nela os pedaços de costela. Passe mais azeite por cima das costelas.

Pausa: gole, trago, assobio.

Espalhe o orégano sobre os nacos. Salgue a gosto, mas sem exagero – se tiver dúvidas, consulte quem saiba salgar as coisas.

Leve ao forno, em fogo brando.

Gole, trago, assobio, mas olho na rapadura que a bicha gosta de esborrar!

Despetale o alecrim (só meio “mói”) e misture-o à rapadura derretida. Sinta o cheiro bom dele se espalhando pela casa; sinta felicidade.

Corte três dentes de alho, em pedaços circulares e finos, e taque tudo na rapadura, que já estará em estado de melaço. Meta também meia xícara de shoyo. Deixe tudo ferver calmamente, e sinta o perfume do alecrim ganhar a casa inteira: uma delícia, e é já começar a curtir o prato.

Confira as costelas.

Gole, assobio, trago.

Aumente o volume do som, que o álcool já deve estar fazendo efeito.

Carinho na mulher, denguinho nas crianças e vice-versa.

Mexa o melaço de rapadura ao som da música, com colher de pau.

Espere. Beba. Curta o som.

Quando as costelas estiverem douradas, desligue o forno.

Quando o alho estiver bronzeado, desligue a boca de fogo.

Bote uma música mais agitada, que, se você estiver fazendo tudo certinho, o pileque estará batendo na porta – pode ser Zeca Pagodinho ou Diogo Nogueira; mas um Petrúcio Amorim da vida também cai muito bem, cola com o sertão da rapadura.

Arrume a mesa.

O prato é servido regando-se as costelas com o molho de rapadura, acompanhado dessas coisas da gente: arroz, purê de macaxeira, farofa de bolacha de água e sal etc.

Mas aí, amigo velho, tem um detalhe: tudo cozinha muito lentamente, e a essa altura você já estará de pileque e de bucho cheio de beliscar outras coisas, se for brasileiro que se preze – é ou não é?

Sua esposa, doce mas impaciente, provavelmente já almoçou o que ficou de ontem, argumentando, com muito tato: “amorzinho, é só pra tapiar a fome enquanto espero, que se eu fico com fome dá enxaqueca...”

Não desespere.

Isso também faz parte da receita.

Faça o seguinte: guarde tudo na geladeira, ligue pro boteco da esquina, peça um tira-gosto qualquer, e beba, ouça música e namore até, como diz Chico Buarque, “o amor cair doente”.

No dia seguinte, coma as costelas (requentadas) com o molho (apurado em pernoite), e verá que, pra curar uma ressaca, não há prato mais adequado.

“Bon appétit!”

segunda-feira, 9 de abril de 2012

De repente, eloquência! (crônica policial. estilo: cômico)


(Como toda crônica policial deste blog, baseada em fatos verídicos)

Noite funda. Terça-feira. Plantão tranquilo. Os policiais dormem depois de muito dominó e conversa fora demais. Nas celas, os presos, sempre de insônia, assistem à televisão, o volume baixo pra não perturbar o plácido sono dos agentes da lei. Dois urubus também dormem, num coqueiro ao lado da delegacia, fechados em si como pequeninas estátuas da Morte. Toda a cidadezinha em silêncio, um céu extenso, a neblina já começando a se formar pelos grotões ao redor. Só um vigilante em vigília, circulando sobre a Caloi Barra Circular, soprando seu apito de quando em vez, e com tanta empolgação que só ouvindo não se imaginaria que ele não chegasse a pesar sessenta quilos, o que, pra falar a verdade, já nem se observa mais, pois os apitos já são tão parte da noite como o sereno, e não incomodam ninguém, nem os ladrões.

Os presos ouvem uma sirene soar, longe, como um mau presságio, e logo se aproximando, ganhado realidade, e junto com ela o som do motor trabalhando e dos pneus em atrito com o calçamento da rua. Parou em frente à delegacia. Bateram. Um policial se levantou, meio zonzo e friorento, calçou as sandálias e abriu a porta. Eram três policiais militares conduzindo um preso. O civil os cumprimentou, fazendo-os entrar; chamou o colega que ainda dormia, voltou e perguntou aos PMs que é que havia. Na verdade não era nada aparentemente incomum. Um sujeito completamente embriagado, algemado pelas costas, sem camisa, descalço, magro, consideravelmente agitado, todo sujo, girando os olhos como se fosse desmaiar, e meio amassado em virtude das “quedas” da bebedeira etc.

Um militar fez o conduzido sentar-se, não com muita delicadeza, e começou a explicar:

– Esse feladapu...“piiii!” encheu a tampa de cachaça, chegou em casa alterado, deu umas lapada na mulher dele, incomodou a vizinhança, botou a rol... “piii!” de fora no meio da rua, mijou no muro e por aí foi; olhe, pintou miséria! E ainda desacatou a autoridade.
– Desacatou como?
– Foi assim: chegamo lá e demos voz de prisão. O cabrassafado levantou os braço na hora, mas esqueceu a rol...“piiiii!” do lado de fora, e ficou rindo pelo canto da boca. Dei-lhe logo um carinho no pé da orelha, mandei ele guardar aquela po... “piiiii!” e coloquei ele de costas pra revistar. Pois não é que quando eu passava a mão pelos bolsos de trás dele, ele olhou de banda e me perguntou: “Quer o c... “piiiii”, senhor? Por que não me beija antes?” Dei-lhe outro desacerto e trouxe esse cabrassafado pra cá. As testemunhas já tão chegando.

Do seu cantinho, o preso fazia gestos de negação, como se se defendesse daquelas acusações pra um fantasma que estivesse à sua frente, e tentava balbuciar alguma palavra, explicar-se, mas só saía de sua boca um sopro cheirando forte a bebida.

Disse o policial civil:

–Tá certo. Vai pro xadrez, seu cabradipeia!

O indigitado, olhar perdido, continuava a fazer aqueles gestos idiotas em negativa, parecendo hipnotizado.

– Vou buscar o recibo de presos, soldado; rapidinho.

Quando chegou o policial civil com o dito recibo, os militares levantaram o desordeiro pelo braço e o puseram em frente ao balcão da recepção. O “da-civil” então indagou:

– Nome completo...

Ao que o preso respondeu:

– Jocimé artrisgon...dos fans...
– Como é, homi? Entendi nada!
– É... é... ééééé... jasdingrrr... da ziv... mart...

Dizia ele com a cabeça solta, ora caindo à esquerda, ora à direita, ora girando sobre o pescoço.

– Rapaz, deixe de macacada. Diga aí o nome e o endereço, caral...“piiii!” de asa!
– É...dout... É...dês...dêspaí... ó... é jsmir...dox sts sississ...

Um PM, fazendo que ia danar uma munhecada no preso, exclamava:

– Avimaria, avimaria, avimaria três veiz! Hômi, que a gente só pode sair daqui com esse recibo no sovaco, e esse filho de sete put... “piiiii!” tá complicando! Diz teu nome, miséria!

Mas nada dele falar coisa com coisa, e a peleja prosseguia: o preso todo desarticulado, sem conseguir proferir uma palavra que se entendesse. Todo mundo querendo se deitar. O tempo passando, e nada de solução, e a paciência indo pelo ralo.

O PM que estava mais agitado partiu pra cima do biriteiro já de mão aberta, cara vermelha e bigode arrepiado. Mas aí um dos militares fez um gesto de contenção ao colega, e se aproximou sorrateiramente por trás do preso. Era um cana-velho de guerra, vinte anos de casa; cobra-criada, como se diz – e tranquilão, pouco adepto do esculacho. Observou a cena por uns instantes, franziu as sobrancelhas, esperou com calma a hora certa e encarou o ébrio, que o olhou nos olhos e deixou escapar um riso no canto do lábio.

A tensão aumentou com aquele cinismo desbragado. A pancada vai vadiar!, todos pensaram.

Foi então que o cana-velho, impassível, questionou:


– Ó pessoal, eu tô reconhecendo esse sujeito! Ele é aquele cara que estuprou aquela criancinha lá na chã, semana passada!

Todos calaram, e olharam o preso. O bêbado, numa piscar de olhos, arregalou as pupilas e argumentou, duro feito galo de briga, eloquente como Rui Barbosa:

– Não, meu senhor, que é isso! Eu não tenho nada a ver com aquela desgraça! Sou até amigo da família! Eu não estuprei ninguém não, nem diga uma heresia dessas, sangue de Cristo! Só hoje foi que eu bebi demais! Olhe, pode anotar aí e conferir com a vizinhança que eu sou de bem. Nome: Claudevan Inácio Bezerra dos Anjos; endereço: rua Professor Ambrózio Firminiano Gonzáles, número trezentos e trinta e três, chã. Deixa eu assinar esse recibo... Por favor, autoridades, me levem ao xadrez!

E PONTO FINAL.