Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Livra-me, meu Deus, do DETRAN (cotidiano tragicômico)


Ajoelhando e clamando aos céus:

Maceió, minha terra, é uma cidade tão linda (pausa lacônica)!

Mas, quando eu estiver por lá, livra-me, meu Deus, de precisar ir ao DETRAN…

(sinal da cruz, mãos juntas para a ladainha, pulmões cheios)

Rezando profundamente:

1. “cabrassafadum furafilandum est"

Livra-me, em primeiro lugar, dos fura-filas, e seu jeito reptiliano de locomoção.

Livra-me do cara dura que, acenando falsamente ao atendente, faz que o conhece e se chega, antes de todos, antes da vergonha na cara, e é atendido pelo atendente, que ainda esboça uma reação mas, honrando a lei de inércia, atende-o – até porque a ordem dos fatores não altera a má qualidade do produto.

Livra-me, também, do segurança de Deputado, bruto despachante de Toyota que, austero e ameaçador, antecipa-se à fila e, arrogantemente, paga seu boleto, saindo, triunfante e heroico, a olhar por cima das mulheres, dos aposentados, dos coxos, dos motoboys, dos analfabetos, dos sem-peixe, dos recém-casados, das lactantes, dos donos de fusca, e de toda a sorte de inofensivos e coitados que a vida deu para o mundo criar.

Livra-me, por favor, do fura-filas autoridade pública, o da carteirada, que tem a coluna reta e os olhos caídos; que tem vergonha também, mas tem mais pressa que vergonha.

Livra-me, ademais, da falsa-manca, da falsa-grávida, da freira oportunista, do primo do vizinho, do vendedor de vaga, do que entra pelos fundos, do despachante profissional; livra-me, enfim, de todos os imunes à fila, imunes ao vexame, imunes à vida coletiva.

2. “velhitas malis, quengorosa est; calvum cornalis, piorum est”

Livra-me, ó meu Deus, da atendente de cordinha nos óculos. E se ela estiver lendo um catálogo da Avon, afasta de mim esse cálice! Explica a ela que eu não criei o desamor. Ilude-a, Senhor; faz com que ela creia num namoro novo, que ela sorria, pois que, admito, quando ela espicha as sobrancelhas e olha a papelada por cima daqueles óculos pontudos de trinta anos atrás, arrepia-me a coluna até quase arrebentar a nuca. E se ela leva tudo para os fundos, a consultar sei bem quem, faltam-me até as pernas. Livra-me dela, Senhor, que ela me apavora.

Livra-me, Santo Pai, do homem de peruca a quem a mulher de cordinha nos óculos leva os documentos. Ele é o anatomista da burocracia, o dissecador do detalhe, o assassino da esperança. Ele é o sádico-burocrata-negador, cuja expressão orgástica ante a descoberta de um entrave burocrático seria de enrubescer até o mais despudorado dos antigos romanos. Livra-me dele, desse lascivo, que nos bota para dar viagens sem fim, que nos sonega a verdade a conta-gotas; esse incendiário de gasolina; esse arauto do Viagra; esse homem só língua e dedos…

Livra-me, também, dos diretores, desse tribunal nazista de apelação, no qual já entramos condenados… Livra-me deles antes que eles se livrem de mim porque, Senhor, eles são tão peritos em se livrar das pessoas que é bem possível que, antes mesmo que o Senhor me conceda a graça, eu já esteja na fila de novo, vendo os fura-filas passarem rumo à mulher de cordinhas nos óculos (comparsa do sujeito de peruca) que, indiferente à dor alheia, lê o catálogo da Avon…

3. “inspetorum inspetandum, feladaputatis est”

Senhor, por fim, livra-me, se não forem possíveis os pedidos acima, do cara que passa o carro em revista… Livra-me deste censor da mecânica, deste tarado da lataria, deste crítico da manutenção. Livra-me de vê-lo esfregando as mãos com uma estopa e fazendo um não com a cabeça… Livra-me dele, Senhor, que a este só faltam (se é que faltam) a foice longa e a capa negra, e o corvo fincado nos ombros, repetindo o famoso verso: “nunca mais; nunca mais…”

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Problemas de interpretação... (cotidiano cômico)



Final de semana passado levei minha filha ao zoológico, pra ver os animais cativos.

Aprendi logo que o cativeiro (talvez salvo pros homens – exceções à parte, que tem doido pra tudo) é um conceito muito relativo no que diz respeito ao conforto.

Há animais que estão, verdadeiramente, acabados, tristes, mofinos, doidos. São, em regra, as aves, os grandes predadores e aqueles animais latifundiários que se sustentam em vastos territórios e migrações fantásticas. Dentre esses há: a ala dos esquizofrênicos, alucinados, que estão em franco delírio prisional. Já outros estão excitados em excesso, revoltados a bater nas barras, grunhindo sua rebeldia, seu inconformismo. Outros estão simplesmente vencidos pela depressão – feito o leão que, pra engravidar uma fêmea, copula algumas dezenas de vezes; o do zoológico enviuvara, e não lhe restava consolo na vida, nem o “fazer justiça com as próprias patas”, haja vista as afiadíssimas garras: era, o pobre, um grande espartano melancólico.


Por outro lado há uma bicharia alegre. São as caças, as presas, as refeições, e o proletariado da selva: pequenos roedores, répteis (acho que por causa do sangue frio), ruminantes e outros que tais. Esses, fora do alcance dos dentes alheios, parecem zombar dos visitantes, estufando seus vulneráveis peitos com exagerado orgulho e indisfarçada sensação de invencibilidade.

Mas, puxando pelo título desta crônica, vim falar de problemas de comunicação. E, primata que sou, desentendi-me com outro primata.

Explico:

Passávamos pelas jaulas dos macacos (babuínos, macacos-prego, macacos-aranha – este, o bicho mais sem-vergonha que existe, brasileiro nato e honorário – e outros mais). Numa jaula do canto, havia dois macaquinhos amarelos, cabeçudos (cearenses, desculpem, mas lembrei de uns amigos) e brincalhões (cearenses, é isso mesmo). Não sei da raça, nem da idade, mas achei (acho, sei lá), que eram apenas filhotes. Bem, o fato é que assobiei pra um deles, que espichou os olhos pra mim. Fiquei todo orgulhoso porque, quase sempre, eles não dão bola pra visitante qualquer. Pensei: pô, eu devo ter um dom de comunicação único! Continuei assobiando, fazendo gruídos, barulhos finos, e ele me encarava, balançava o corpinho, atento, quase bípede. De repente, saltou prum galho, balançou-se numa corda e agarrou-se à tela num salto cinematográfico, olhando-me com vivacidade. As pessoas ficaram admiradas; minha filha encantou-se. Mas, pobre de mim, que me iludi! Quando fui ver, o macaquinho, a me encarar, dentes arregalados, boquinha aberta, fazendo mil caretas, exibia uma baita ereção… Puxa vida, só aí notei a carinha de tarado dele! O pintinho balançava, subia e descia, apontando em minha direção! Risada geral e eu, humilhado, mal interpretado, passei, a passos pesados, rumo à jaula do hipopótamo, que estava submerso, indiferente, e não oferecia risco ao meu pudor.

É nisso que dá inventar de falar um idioma que não se conhece.


sexta-feira, 11 de maio de 2012

O coqueiro é alto e o jumento é ligeiro (cotidiano cômico)

“Todo homem tem algo a me ensinar,
e nisso eu sou seu discípulo.”
Emerson



O dia é sexta-feira. E é fim de expediente: tarde caindo, a vontade de beber subindo.

Lá em Maceió, na construção dos apartamentos que meu irmão está levantado, o conjunto Fabrizziópoles, juntamo-nos à peãozada pra beber. Rara ocasião em que ele, Fabrizzio, paga algo pra alguém.

E é rara, também, por outros detalhes, que aliás são o principal: o tira-gosto fervendo na panela preta e amassada, com lenha que é sobra de construção. Não sei o que diabo vai ali dentro (e nem é bom saber), mas a delícia que sai daquela mistura é de morder até os dedos, se o cabra se descuida. Tem a cerveja geladíssima, em quantidades industriais, e uma caninha de lambuja. Sentamos em bancos T (um tijolo em pé, outro deitado), ao redor da mesa de zinco, pra escutar Cabravéi falar.

Cabravéi, o mestre de obra, um anjo de gente, um monstro de trabalhador, um gênio da narrativa, de olhos verdes e acesos sobre um bigode que é só aquele risquinho. Muito esperto, com seu chapéu preto de grandes abas, sua cara galega queimada e, acima de tudo, sua inteligência rara pra levantar imagens que, confesso, ficarão incompletas neste texto, que é mais homenagem que reprodução, pois ele falando dá de dez.

Já na primeira vez que participei dessa reunião virei tiete.

Sentei-me ao lado de Cabravéi, quando um pedreiro começou a falar:

- Mais hômi, vocês num sabe é di nada! Eu já vi um mamuêro que tinha, só num lado, 180 mamão! Isso sem contá os que tinha do lado di trás, que num deu tempo di contá...

Cabravéi arregalava os olhos, fazia que se levantava, com uma cara indignada.

Eu pensava que ele estava revoltado com uma mentira daquelas, mas não: ele estava com raiva porque o cabra estava mentido mais que ele, que, afinal, era o mestre da obra!

E o cabra ia falando, e Cabravéi olhando sem desgrudar, pegando ar, e me dando cotoveladas, uma mais forte que a outra, enquanto murmurava pra mim:

- Piamermo, piamermo; piamermo...

Quando o outro terminou, o Cabravéi aprumou-se no tijolo, estufou o peito e mandou:

- Maxtá... Vocês sabi é di nada! Num anda, num vê o mundo! Esse aí mermo, vêi de Parmeira dos Índio numa inxurrada, caiu in Maceió e pronto, ficô... Hômi, eu vi foi um coqueiro, assim grandão, que o cabra subiu nele cum 16 ano e vortô pusentado do INSS! Isso falano di pranta, que, falano di bicho, eu já vi um jumentinho na carrêra, se cagando todo com medo di lubizômi, e com duas cangaia nas costa, fazê um cuiva tão ligêra, mas tão ligêra, mas tão ligêra que quando ele parô, e fôro dá fé, a ruma di merda tava intêrinha dentro da cangaia!

Risada geral, e Cabravéi fazendo cara de sério, sustentando a versão vírgula por vírgula, sem abrir nem pra um trem desgovernado...

Pra não me alongar demais, vou deixá-los só com esse aperitivo. Mas, o melhor (ainda) de Cabravéi está por vir, em breve, neste blog.


Inté!

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Autocrônica (estilo cotidiano)


Um dia desses sentei-me pra beber comigo. Pablo e Pablo. Olhos nos olhos. Dois copos de bebida. Duas carteiras de cigarro.

Estava de mau humor, e repreendi o Pablo severamente. Esfreguei nas suas ventas as suas fraquezas, os seus erros, a sua mediocridade.

Ele acovardou-se, calado, cabisbaixo. Timidamente, argumentou que nunca teve intenção de estragar as coisas; que seu coração é bom; que quis acertar, mas falhou…

Retruquei que intenção não basta, que ele teve mil chances e as desperdiçou, e que bebeu muito, gostou de mulher em excesso e vagabundeou demais!

Já com lágrimas nos olhos, ele disse que era difícil ouvir aquilo tudo, que seu coração estava despedaçado. Disse que um dia acreditou que aquele era o caminho pra amizade, pro amor, pro proveito do tempo; mas que via, agora, a droga em que tudo deu, pois estava sozinho, triste, inerte, enxovalhado.

Fui mais além, e falei de tudo o quanto ele poderia ter sido, e não foi. E que era tarde. Que seu destino estava traçado: “Pablo, disse eu, você foi um baita burro!”

Ele juntou as duas mãos e as enlaçou, e elas tremiam e, feitas em concha, ele deitou sobre elas a cabeça e chorou até a vermelhidão, lágrimas abundantes, soluços sentidos, arrependimento sincero. Quando isso aconteceu, quando o vi daquele jeito, deu-me uma melancolia, meu coração cresceu, meu queixo tremeu-se todo!

Olhei-o, ali, o pobrezinho: meu querido Pablo, meu doce Pablo, meu Pablo sofrido… Amo-o tanto!

Acolhi-o feito um bebê, e juntei suas lamúrias em meus braços, em meu peito confiante. Alisei seus cabelos, beijei sua cabeça e disse: “Calma, Pablito… Me desculpa. Vamos recomeçar, tá legal? Você ainda pode!”

Mas, cá pra nós, acho que o Pablo é um caso perdido…