Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Surdos, mudos e dançarinas


Faz muito tempo, mas essa lembrança nunca desbotou em meu coração; está nele como uma rosa acesa dentro de um cofre – uma crônica perdida, que hoje reescrevo:

Eu vinha no lotação, lá em Maceió, pensando em nada, o rosto na janela. Ao chegar à Praça Centenário, demos com um tremendo engarrafamento e a cidade parou de passar, bem em frente a uma parada de ônibus lotada, cheia de gente apressada em fim de expediente, dando-se a si e à vida uma importância, uma urgência que não é bem o que a vida pede. Fiquei olhando com indiferença pra tudo e todos, matando tempo. Mas, alto lá! Um casal na calçada chamou minha atenção. Um casalzinho a mais, mas tinha algo diferente com eles, eles tinham um não sei quê... Não os entendi, logo assim de cara, e fiquei a observá-los. Que se passava com os dois?... Ah, vejam só: eram um casal de surdos-mudos! Que graça eles eram! Com que delicadeza davam-se em carinhos! Eles faziam pequenos gestos, desenhavam coisinhas no ar, escondiam-se nos pescoços um do outro como se fossem cochilar em pleno caos urbano. Sorriam, indiferentes ao barulho e às palavras, espalhando formas e expressões que eram ver a calma neste mundo desesperado. Eles eram a coisa mais linda, o que mais comunicava afeto, com aquela suavidade que, em dois movimentos, transmitia um sentimento que eu jamais conseguiria alcançar, mesmo em um milhão de palavras a um bilhão de leitores. Lá estavam eles, lindos, doces, poetas altíssimos em plena atividade; ali, de bandeja pra nós; ali, a céu aberto, expostos à vida, mas cobertos de pudor – quem ousaria perturbá-los?

Esses dias, observando, admirado, as estudantes e docentes do curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco, vi algo semelhante, essa intenção de quem quer pôr a palavra à esquerda e mostrar, em gesto, o que trás no coração, e acaba dizendo mais que os tratados de um ônibus cheio de eruditos: a boniteza de uma pessoa alheia ao texto, saltando rumo ao além-texto onde vive o casalzinho.

Fico pensando: servirá a palavra apenas pra falsificar a vida? Proponho que, no final de uma tarde qualquer, nós, como os surdos-mudos, pelo menos uma vez na vida tentemos olhar pra nossa cidade como se a palavra nunca houvesse existido. Talvez, enfim, enxerguemos um pouco de beleza.



(P.s. tenho que confessar uma coisa, pouco lírica mas sincera: hoje eu lembro o mudinho e penso: quem sabe paparicar mulher daquela maneira nem precisa trabalhar... Será que ele ensina aquela arte pra eu usar aqui em casa?)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Você JÁ é um espírito: digo e provo!


Amiga leitora, amigo leitor, sentem-se aqui na mesa desta crônica e peçam os seus drinques, que hoje é dia de sinceridade.

Primeiro, pra entrar no clima, respiremos fundo, depois olhemos pra esse céu em noite clara, estrelada – um brinde e saravá!

- Tim-tim; saravá!
- Tim-tim; saravá!
- Tim-tim; saravá!


Vamos ao assunto que dá título à crônica, e confesso que estou aflito, pois esses dois (leitora e leitor) encaram-me com uma tremenda desconfiança – peraí, vou tomar uma lapada; pronto.

Amigos, vamos começar a provar, gole a gole, que nós já somos espíritos (estalo os dedos, aliso o bigode, acendo uma cigarrilha). Olhem pra esse boteco: os quadros da seleção brasileira, o balcão, o dono estressado, as mesas de plástico, o ventilador de teto, as quengas fazendo barulho etc. Tudo, pra começar, tem suas cores (envelhecidas, como em qualquer boteco que se preze, mas cores): amarelo, vermelho, azul, cinza, rosa e por aí vai, não é? Não. Não confie nos seus olhos – princípio que vai muito além do mundo do chifre e da malandragem. As cores não existem. Nada tem cor. A cor é uma ilusão criada pelo cérebro. O cérebro lê a informação que a luz trás através de nossos olhos e atribui cor às coisas; ele inventa isso, por assim dizer. A causa disso? Ainda se divide a ciência. Mas o fato é que nada tem cor, nem o preto-e-branco com o qual você, à moda antiga, já deva estar imaginando este boteco. Nem isso. As coisas não têm cor nenhuma. A luz as revela e ponto – portanto, leitora amiga, aquela mulher que entrou aqui com o “coroa” não estava nada “exagerada”; ilusão sua, viu? Pensando nisso, veja aqueles vagabundos, num canto, jogando dominó. O dominó é feito de marfim, edição de luxo – afinal não são quaisquer vagabundos, os que jogam: são... deixa quieto. E eles (os dominós, claro, jamais os vagabundos) talvez sejam a coisa mais concreta que haja nesta espelunca, onde tudo é oco e empoeirado e enferrujado e prestes a desabar. Mas, calma! Cada pedra desse e dominó é formada por átomos, do mesmo jeito que as paredes velhas daqui o são de tijolos. Esses átomos são feitos de... de... de... espaço! Como? Sim, cara, eles não contêm praticamente p... coisa nenhuma! Eles são como um ovo, em que a gema tivesse um centímetro e a casca ficasse a cem metros de distância. Sendo que a gema é feita de energia, e a casca também. Entre a gema e a casca não tem NADA! Ou seja, nada desta espelunca existe de maneira concreta, é tudo espaço, energia e vazio. Nada sólido (nem a carne velha do tira-gosto), nada real (nem a doença venérea iminente), nada, nada, nada... Mas, argumentou o leitor à minha esquerda (a mulher ainda não disse uma palavra: está pensativa e distante), estou vendo e tocando tudo que há aqui! Calma (digo eu)! Você vê, e do jeito que está tomando pinga verá dobrado, só o que a luz manda pelos seus olhos dentro! E (pergunta ele) ela não manda pra dentro tudo o que há? Claro que não (digo eu)! Por exemplo, nesse momento, mais que esse cheiro de cigarros e linguiça frita, há uma nuvem de partículas atravessando os corpos da gente como a luz do sol atravessa uma peneira, atravessando esses espaços entre a matéria (entre a gema do ovo e sua casca irreal) com mais facilidade ainda que a da chuva pelas goteiras daqui; algumas, como os chamados neutrinos, passam por dentro de você, afetam seu DNA e influenciam na evolução! Você vê apenas uma parcela de tudo o que está se passando ao seu redor, aquilo que a luz consegue trazer, e, ainda assim, como no caso das cores, só o que sua mente permite repassar... E, claro, com suas mãos feitas de vazio, você não toca outros vazios; você apenas pensa assim porque, como dois imãs de geladeira ao contrário, sua mão e as coisas se repelem, mas nunca se tocam, o que não o impede de lavá-las quando sair desse banheiro assassino daqui.

Nesse momento, a leitora que, por ser mulher, já é naturalmente tendente ao abstrato, sai da meditação e manda:

- Então somos seres formados por nada, enxergando uma parcela mínima de coisas que não são de verdade... Somos tão irreais quanto um personagem de videogame, ou do filme Matrix...

- Eita (disse eu), que mulher é danada pra sintetizar as coisas bem (quando quer)!

E o leitor, olhando ao redor, depois pras próprias mãos:

- A gente sempre imagina o espírito como uma coisa inexistente, porque crê no concreto, pensando que ele é concreto... Mas, e Deus, e a religião?

- Amigo velho, não vim complicar falando de religião, nem passar vexame falando do Inalcançável (e vice-versa). Todos já sabem que eu não acredito que tudo o que existe exista por acaso, por coincidência, porque seria como despejar naquela praça uma carreta de dominós e todos, tchan!, darem seis – mas esse é outro papo, pra depois. Eu vim falar apenas isso (e as conclusões, cada um com a sua): que tudo ao nosso redor é uma magnífica ilusão, uma puríssima ilusão brilhante; tudo, desde a lua que banha esta noite de sábado até os acordes daquele violão num cantinho, passando pela latrina velha, tudo é feito da mais pura ideia, é feito de nada, de vibração, como o samba que agora escutamos. Se você procurar, no fundo de tudo, vai achar nada dentro de nada, como quem procura um pensamento dentro de uma cabeça. Portanto, somos espíritos, na exata definição popular do termo: criaturas irreais e “impossíveis”, feitas de coisa alguma, vagando por aí; espíritos bebendo essa bebida, que é feita de vazio e energia, e sentido amor, que é feito de distâncias ainda maiores. Isso, na minha humilde opinião, é muito mais bonito que a perspectiva de sermos feitos de pedra e termos um espírito em nós, como um inquilino abstrato. Portanto, quando você vir alguém dizer que viu uma coisa real, que a tocou, ou esse alguém é doido ou tá querendo lhe (ou se) tapear. Mas, se for um doido, e essa coisa for uma pedra, e ele atirá-la contra você, não convém deixar de desviar sob o argumento de que a pedra é uma ilusão...*



(* Claro que, fora o muito que ignoro, deixo de citar coisas importantíssimas, como a Física Quântica, o estudo dos universos paralelos etc. É que, além de minhas limitações pessoais, que já são muitas, o espírito despretensioso desta crônica não comporta tudo isso. Há farto material sobre esses temas na internet, em livrarias, documentários etc. – e o melhor: em linguagem facílima, que a gente alcança numa boa.)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Trinta anos de idade, e contando ...





Chega uma época em que a gente para, olha pra dentro e conclui (às vezes com um baita susto): eu sou um adulto de verdade, feito achava que só meu pai sempre seria...

De repente, a gente também se dá conta (sorrindo) que viveu décadas numa espécie de entorpecimento, de delírio provocado por televisão, música em demasia, mulheres desperdiçadas, bebedeiras que nos levaram a lugar nenhum – ou melhor, mais justo, mais honesto: trouxeram-nos até o dia de hoje.

É o tempo em que tudo o que foi (menos a infância) parece repetido, sem graça, vazio; em que, se olharmos pra frente e quisermos ainda viver como sempre vivemos, cairemos na loucura, no suicídio, no retardamento.

É o tempo da casa, do trabalho, da mulher que dorme, da criança que cresce, de pensar na existência da vida.

É o tempo de entender o quanto amamos nossos amigos, que, de mãos dadas conosco, venceram as trevas e hoje se olham (perplexos reconhecidos), a dizer: velho, obrigado, você ainda está comigo! É você mesmo, não? Claro que sim!

Lembra, Felipe, de quando você cochilou ao volante e quase nos manda pro inferno? Lembra, Rodrigo, da Belina 1990? Lembra, Zé Edson, de quando você aprendeu a tocar violão? Lembra, Lula, daquele soco que você deu na quina da parede? Lembra, Frank, do fusca que corria como uma ferrari? Lembra, Anum, da mulher desgraçada que levou a mobília da sua casa enquanto você dormia de pileque? Lembra, Diogo, de você vestido de diaba no bloco? Lembra, Mário Aloísio, das mulheres banguelas da Escorpio´s? Lembra, Vanessa, do primeiro livro que escrevemos? Lembra, fulano, que você ficou chateado porque esqueci de mencioná-lo numa crônica, e não se consolou nem quando lhe lembrei que minha memória é um lixo? Lembra? Lembra? Lembra...

Paulo Renault (saudoso amigo), poeta genial que declamava sua arte nos botecos de Maceió e encantava quengas e freiras, dizia que raramente um artista se faz antes dos trinta anos de idade. Sim, ele está correto, e isso é porque em regra um homem só se olha no espelho à vera, só se encara de verdade a partir dos trinta anos.

Hoje, com essa suavidade ao meu redor, não posso dizer que tudo não passou de um sonho, mas que tudo passou de um sonho a outro sonho, mais lúcido e profundo, mais conforme nossa corajosa fragilidade e nosso alcance – que por algum mistério vai além de nós.

Trinta e poucos anos pra começar a entender que a mulher é um segredo que só se revela, e mesmo assim parcialmente, no cotidiano, e se agirmos com uma labuta insistente e encantada de cientista. Que o filho não é nosso herdeiro, é a flor de nossa razão. Que, graças a Deus, Deus jamais seria como aquele que o padre da escola nos ensinou. Que a música, numa festa, não é coadjuvante, é convidada de luxo, é de ser paparicada e ouvida. Que a bebida é feita pra sorrir e não pra gargalhar. Que os amigos, mais que gente de se abraçar e apertar a mão, são nosso próprio coração, enlaçado e protegido, caminhando rumo ao tempo adulto, depois rumo à velhice, e depois, sim, depois rumo a uma silenciosa despedida, rumo à crônica definitiva.




sábado, 11 de agosto de 2012

Perguntas pra quem entende e pra quem não entende de futebol (cômico)


É um costume consagrado, na crônica brasileira, falar-se de futebol.

Mas, confesso humildemente, de futebol não entendo nada.

Então respeitosamente lanço àqueles que manjam do assunto as seguintes perguntas (se o leitor quiser, acrescente outras), pra ver se embarco nessa onda brasileiríssima, essa lacuna em meu repertório.

Lá vão:

1) Por que o Brasil é chamado de O País do Futebol? Se temos duzentos milhões de habitantes, todos praticando quase que só este esporte, e com biótipos pra tudo que é função, não deveríamos ser tão imbatíveis quanto os jogadores de basquete dos EUA? Por que levamos lapada de países como a França, do tamanho quase que da Paraíba, e que têm outras coisas pra cuidar? Será que não temos mais vocação pra torcer que pra jogar?

2) Por que se duvida da supremacia de Pelé alegando-se que naquele tempo se corria menos que hoje? Isso muda a técnica? Todos não corriam menos? Que tem a ver o futebol com a maratona?

3) Por que alguém que nem sabe onde fica a sede de certos clubes (Flamengo, por exemplo), nem o que significam seu nome e sua história, se torna fanático por esse time? Por que, sendo assim, morrem e matam (literalmente) por uma causa sem causa?

4) Por que alguns comentaristas dizem, num programa, que têm saudade do futebol-arte e, no outro, que jogo bonito não vence partida?

5) Por que noventa por cento desses mesmos comentaristas repetem, antes de todo jogo, isso: “o time A vai partir pra cima, e pode liquidar logo a partida; mas, se o time B partir pro contra-ataque, pode vencer”? Isso eu também sei dizer...

6) Por que os comentaristas de arbitragem quase sempre só criticam os juízes depois do replay?

7) Por que se diz que o craque é um artista da bola, e se condena o fato de ele ganhar milhões, e não se faz o mesmo com um artista da música, mesmo sendo este um perna de pau? E por que a gente só critica a raparigagem daquele?

8) Aliás, falando da pergunta anterior, por que a gente critica o Kaká por ser careta, o Ronaldinho por ser farrista e biriteiro, e o Romário por ser farrista e não beber? Pra agradar o cara teria que ser careta, farrista, cachaceiro e abstêmio ao mesmo tempo?

9) Por que se diz que Galvão Bueno é burro? Um cara que consegue animar uma corrida de Fórmula-1, que é praticamente um engarrafamento de luxo (porque ninguém ultrapassa ninguém), não deveria, pelo menos, ser chamado de brilhante? Não seria demais querer que, nesse tanto tempo, ele nunca dissesse uma bobagem? Quem conseguiria isso?

10) E a última e, pra mim, a mais intrigante: um crítico de qualquer coisa (cinema, literatura, culinária etc.) ou não atua na área que critica, ou nela é ou foi gênio, sob pena de desmoralização. Por que cargas d’água, então, a gente houve e considera a opinião de quem, quando esteve dentro das quatro linhas, foi inimigo declarado da bola?

Aguardo as respostas, e por favor não esculhambem minha mãe – ou esculhambem, mas refiram-se àquela mãe imaginária que todo brasileiro tem pra servir de alvo pros amigos, que inimigo bate mesmo é na mãe biológica.


Atenciosamente,

Pablo de Carvalho

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Crônica pro Dia dos Pais (cotidiano)


Minha filha, neste Dia dos Pais, o seu velho gostaria de lhe pedir uma coisa impossível de se pedir a uma criancinha de cinco anos de idade: que você esqueça o comércio e a pieguice do dia de hoje, olhe pros meus olhos (esses olhos bobos que admiram seu rostinho sonhador), e tenha paciência comigo. Seu olhar seja então, assim no meu encanto e na minha fantasia, crescido antes do tempo. Veja você, portanto, o rosto de um homem que é seu pai, e tente entendê-lo. E esse olhar de homem, através do qual eu agora espalho sobre você o meu amor todinho, é todinho o olhar de meu pai, é como meu pai me olhava em menino; o mesmíssimo olhar, apenas filtrado por meu coração (que é seu) e repetido sobre você à minha imagem e semelhança.

Um dia, já mulher, quando ler esta crônica que agora lhe parece maluca, você compreenderá que um dia, enquanto eu a acalentava no encantamento que foi ter você pequenina, miúda, de mãozinhas doces e sorrisinho lindo, eu fui um homem que viveu entre gente, que foi à rua e voltou, que bateu e levou pancada, que escreveu a palavra possível, que teve os amigos que conseguiu merecer (teve-os, é melhor confessar logo, mais do que mereceu), e que chegava do mundo pra encontrar você e dizer tudo o que não viveu, porque o que viveu foi só sofrimento e desamparo, e você era a única gratidão, a única razão de eu me lavar da mágoa, olhar pras estrelas e sussurrar: obrigado; ela existe!

Sim (que coisa, né?), isso é o que lhe deixo: um velho tolo e sofrido; um velho complicado; um velho cheio de cidades nos olhos, cheio de dor a esconder e perdão a pedir; um velho injusto que não quer aceitar a injustiça, e que, por isso mesmo, não aceitará, no Dia dos Pais, mais que olhar pra você e sussurrar: “Vê, que coisinha mais mimosa; que coraçãozinho que eu não alcanço, e que diz que me ama!...”

Nenezinha, bebê, florzinha amarela que eu trago na palma das mãos como num aquário: cresça, olhe pra mim, olhe pro seu avô, olhe pra todos os que têm ou tiveram pai, pra todos os que têm, tiveram ou terão filhos, e sinta amor – do jeito que as coisas vão, talvez, quando você crescer, essa palavra só exista num dicionário –, mas sinta pena dos homens que precisam ser lembrados por terem filhos, porque (diz o povo com sabedoria) o pior defeito é a ingratidão - e eu nunca lhe serei ingrato.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A mulher desenhando (cotidiano lírico)


Uma mulher desenhando é a coisa mais linda!

Ela se senta com ternura, ajeita o corpo na cadeira, imobilizando-o docemente, feito uma estátua perto de virar pessoa, e, em curtíssima meditação, inspira e expira o ar sortudo que passa diante de seu rosto em perfume.

(a manhã nasce sobre o Brasil, e os poucos passarinhos que ainda vivem na cidade cantam, apesar da cidade)

Depois, ela abre o estojo e tira um lápis, que lhe vem à mão como um homenzinho magro e rendido, e prestes a cumprir sua sina (como todo homem que se preze): ser instrumento da mão feminina, riscar o que ela manda, achando (pobre tonto) que risca o que quer.

Ela fecha o estojo, e é como se mostrasse ao lápis, ao homem-lápis, isso: vê o mundo, criatura, por minhas mãos, porque dentro desse casulo em que você vive, com tantos lápis sem razão de ser ao seu lado, você não passa de um pedacinho de carbono...

(há café sendo coado, há cuscuz no vapor, e esses cheiros se espalham pela casa, mas nada mais que isso: silêncio, por Deus, que há uma mulher desenhando na sala...)

Então ela abre o caderno (como se abrisse as portas da vida), inclina o rosto e joga por cima de um ombro os longos cabelos, os cabelos bonitos que deixam ver o rosto inclinado, pensativo, escolhendo a coisa que pretende criar.

(uma criança acorda, mas para no corredor, sonolenta e curiosa. Fica a querer entender sua mãe, que sem motivo aparente tomou seu material emprestado pra desenhar, nesta manhã igual às outras, neste dia que nem de férias é)

Seus olhos (os da mulher que desenha) estão atentos, há neles alguma coisa mágica. Sua boca está tensa, dentes pressionam o lábio inferior. Sua mão faz o lápis girar. Enfim ela se ilumina, sorri discretamente, acende as pupilas e desenha algo que começa parecendo uma pedra, depois lembra uma flor, depois lembra um bicho, mas dos retoques finais surge um rosto de homem, de um homem preocupado, de olhar distante; de um homem sempre à procura de alguma coisa perdida no infinito – essa coisa que ele procura, aposto meu braço direito, é a mulher que o desenha.