Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A teoria das coisas simples (cotidiana)


Vi uma senhora, num dia que não recordo, no centro de Recife, vendendo espetinhos. Fiquei observando, encantado, o jeito de trabalhar dela. Tudo era impecável, higiênico, honesto até os ossos. Os espetinhos, cordados exatamente do mesmo jeitinho. O refrigerantes, limpos, brilhando num isopor branco como o sorriso dela quando entregava a comida ao cliente; e era engraçado que ela mal olhava o dinheiro: ficava espiando o gesto de aprovação do comprador, e estava claro que ele gostava de dar alegria mais que de ganhar sua graninha sagrada – salve o fruto do trabalho, amém.

Que diferença haverá entre um escultor, um pedreiro, um poeta, um pintor, um músico e a senhorinha simpática que vende pequenas alegrias às pessoas? Nenhuma, se nossos olhos forem simples; e se nossos olhos forem simples, verão que a perfeição, a profundidade, a extrema religiosidade não estão apenas em pintar um teto de capela, compor uma sinfonia ou escrever um clássico. Nada disso. A obra, porque não tem carne, é uma ilusão. A fama, porque só existe nos outros, é outra ilusão. Vale só o ser humano, bicho desencontrado que teima e livrar-se da beleza; mas há desses bichos que, feito a senhorinha da barraca, quanto mais beleza atiram pelas mãos fora, mais bonitos ficam.



domingo, 14 de outubro de 2012

Crônica inútil


Às vezes penso em deixar de escrever crônicas. E não é pelo fato de as pessoas quase todas não darem a mínima às coisas do coração. Nada disso. O sentimental sempre foi e será sempre um operário da solidão. Penso em deixar de escrevê-las porque não encontro mais espaço na cidade em que haja uma razão a compor o lirismo de uma crônica brasileira, nordestina, pernambucana, recifense diante dos olhos de um alagoano que, feito um caçador de borboletas zarolho, busca asas que não há, onde asas nunca estiveram. É simples assim: a vida vai virando algo que se inflama e expulsa o cronista como se ele fosse um espinho em seu dedão. Nem argumento há que justifique esta crônica andar mais que este parágrafo. Esta crônica, talvez a última.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Saudades do chão


Tenho saudades do chão. Tenho saudades das plantas, de sua placidez familiar, das lembranças que compartilham conosco, da mútua floração, do mútuo desfolhar, do mútuo viver vendo formigas. É bom morar em apartamento porque ele nos afasta da chatice idiota da vida rasteira que temos cultivado em dias de hoje, e também nos afasta daqueles que nos roubaram o direito de viver em casas – mas bate uma tremenda saudade do chão! Tenho saudades do cão, dos passarinhos bairristas, do cheiro de terra molhada que só sente quem não corta ao meio o destino da chuva. Saudades do churrasco, das trepadeiras, de viver perto da rua, amigo da rua, inquilino da rua, parente do nome da rua. Estranhamente, o apartamento nos bota longe do céu, que ele é em arranha-céu, e a casa é em acolhe-céu. O ventre da casa, sua roupa maternal, sua pessoalidade, sua estrutura mais amiga da anatomia dos homens. As plantas não crescem em vasos, elas limitam-se aos vasos, como nós, tristes cidadãos em iminente ordem de despejo do mundo poético, limitamo-nos ao apartamento. Tenho saudades, sobretudo, de ver cedinho o sol cobrir o chão em que, plantados nossos pés, plantávamos plantas, criávamos bichos, curtíamos a rua de nossa pequenina história, de um canto em que podíamos, num privilégio cada vez mais impossível, respirar fundo e humildemente bendizer o dia, amá-lo sem pressa e sussurrar: este aqui é o meu lugar.