Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O MAIOR PROBLEMA DO BRASIL

O maior problema do Brasil não é a saúde, a saúva ou o INSS. O maior problema do Brasil não é a Esquerda, nem é a Direita, nem é a Igreja ou a Academia. O maior problema do Brasil não é a droga, a caretice, a vulgaridade ou o pudor. O maior problema do Brasil não é a corrupção, o Congresso, a Polícia ou o Judiciário. Não é o pão nem o circo. O maior problema do Brasil não é o Politicamente Correto, a sinceridade ou a cretinice. O maior problema do Brasil não é a vergonha no futebol, nem a floresta amazônica ou a mata atlântica. Muito menos os índios serão o maior problema do Brasil. O maior problema do Brasil não é o assistencialismo nem a livre iniciativa; o capitalismo não é o maior problema do Brasil, nem o socialismo o é. O maior problema do Brasil não é o homicídio, o trânsito ou a poluição. O maior problema do Brasil não é a desfiguração da literatura ou da MPB, ou a reinvenção do Saci, do São João, do Natal e do Halloween carnavalesco. A conversão da infância em cabarezinho também não é o maior problema do Brasil. A sandice das massas ou a mutilação da língua portuguesa jamais serão o maior problema do Brasil. A TV Globo não é o maior problema do Brasil. Pelé não passa nem perto de ser o maior problema do Brasil – avalie a Xuxa! A tristeza não é o maior problema do Brasil. A alegria-a-pulso, os dentes de cavalo dela e o suicídio que vem depois não são – adivinhem... – o maior problema do Brasil. A morte do sentimento nem passa perto de ser o maior problema do Brasil. O maior problema do Brasil, sabem qual é? Seu calcanhar de Aquiles, a pedra no sapato, a pedra no caminho, o elo fraco, o que o faz ser um país medíocre e miserável, desencontrado, enferrujado, fragmentado, atônico e raivoso; sabem qual é? O grande, o maior, o Everest dos problemas do Brasil é (pasmem!) a Interpretação de Textos.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

As águias, as corujas e os abutres.

(para meu amigo Sávio de Almeida)


E estávamos apurando um homicídio tentado, quando o investigador fala baixinho:

– Delegado, chega aqui...
– Fala...
– Um cara ali cantou que tem um tal de Hernandes, que fabrica águias, que disse à vítima que estavam armando uma cruzeta (cruzeta = emboscada, armação, armadilha) pra ela; que ele se ligasse...

Saímos à procura do tal Hernandes, no subúrbio fundo, numa rua cheia de grandes poças de lama.

A um velhinho debruçado no muro:

–Bom dia, Hernandes mora por aqui?
– Hernandes...
– O que faz águias.
– Ah, o que faz águias... Ali, senhor, naquela casinha; ele está lá...

Chegamos. Na entrada da casa, depois de uma cerca velha, a oficina e, sobre uma mesa, um acúmulo de pedaços de marisco que, como num caos primordial, fazia contraste com águias em progresso, ainda sem pés nem cabeças, mas já aladas, o porte elegante em voo, estacionado o quebra-cabeças da mente do artista pela chegada da Departamento de Homicídios.

Num armário velho, alta e atenta, filosófica, uma coruja da mesma mão observava tudo.

– Seu Hernandes?
– Sou eu.
– Podemos conversar?
– Pois não, senhor. Vamos para o quintal...

Atravessamos o oitão bagunçado de sobras de artesanato, de feira, de coisas velhas da vida da gente.

Lá atrás, Hernandes sentou-se numa cadeira de balanço rasgada, dessas de estrutura de ferro enrolada em cordas de plástico – eram azuis. Por cima da cadeira, uma lona fazia tenda, pendurada numa árvore, e mais um pouco à esquerda havia uma rede de balanço, surrada e prestes. Pendurados em cordões nos galhos, CDs brilhavam como a pequenina constelação do artista. Ao pé do tronco, um fogão sem serventia era casa para uma galinha choca. Perto do muro, uma churrasqueira de improviso. Ao fundo, o matagal.

Hernandes sentou-se na cadeira com bastante realeza – era magro, negro e tinha uns quarenta anos de idade. Cruzou as pernas e aguardou em sim.

– Hernandes, nós ouvimos falar que você avisou a fulano que estavam armando uma cocó (cocó = cruzeta) para ele...
– Não foi bem assim, senhores. Eu disse que ele estava bebendo demais, importunando a comunidade, e que acabariam armando para ele...
– E essa tentativa contra ele?
– Não sei quem foi etc.

Entrevista finda, agradecemos e, saindo, perguntamos pelas águias. Cheio de orgulho, ele falou:

– Fabrico com marisco, madeira, a cola tal etc. Daí vendo por sessenta reais a um atravessador que sai daqui e vai vender pros turistas lá em Boa Viagem...

– Obrigado, tenham um bom dia...

Entrei na viatura e olhei para a fachada, onde havia uma plaquinha assim: vende-se tabu. Tabu (sorri sozinho), que coisa...

A caminho, porque era longe a oficina de Hernandes, fiquei matutando: que tristes tempos vivemos! Tempos de homens vazios e violentos, que se pensam um amontoado de carne que desfalecerá dentro de um tempo inútil, numa vida sem razão, afundando no nada. Por quê, como Hernandes, os homens estão perdendo a capacidade de compor águias? Por que danado esses homens não meditam mais, como a coruja de Hernandes? Se muito, desenham abutres nos corações gelados, para devorar a carcaça do dia, para ascender apenas na intenção localizar aquilo é corrupto e afundar o bico nisso.

Hernandes: o homem que, numa manhã trágica qualquer, surgiu no derradeiro subúrbio para me relembrar que o homem é grande, o homem tem águias no coração, o homem, disse-o bem Ariano Suassuna, tem em si uma centelha divina.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Brasil, o país do homicídio e do futebol

Neste último plantão me bateu uma vontade irresistível de comer um jabá. Mais precisamente, um jabá com coca-cola. O jabá, aqui em Pernambuco, é um prato delicioso de charque gordo (aqui se diz charque gorda; em Maceió, charque gordo, e confesso que não sei que gênero convém), cozido em feijão preto, acompanhado de arroz, farinha e vinagrete. Pensei: se o negócio estiver calmo, o jabá não me escapa! E porque estava tudo calmo, na hora do almoço fui à beira-canal matar a vontade.

Chega o garçom, ensebado de cozinha dos pés à cabeça.

– Um jabá executivo e uma coca-cola, por favor.
– Novo! (“novo” é uma espécie de “OK” pernambucal)

Sentei-me em frente a uma enorme TV, que passava os lances e gols da rodada. E foi um tal de gole por drible, garfada por assistência, suspiro por gol.

– A conta!
– Novo!

Entrei no carro com a testa suada, o bucho em vias de arrebentar o cinto e soltando soluços de alegria: bendito seja o Politicamente Incorreto, amém. Saí de lá sonhando com uma rede estendida em beira de praia, o vento sonso, aquele abraço uterino do tecido e o mole-mole gostoso de um cochilo...

Mas, mal pus os pés no Departamento:

– Delegado, homicídio...

Essas reticências na fala de quem noticia são uma crueldade! Homicídio... Pausa dramática, silêncio, suspensão: homicídio...

– Vamos (ic!) nessa...

Saímos pelo caminho, e o danado do jabá balançando na barriga, pressionando as costelas contra as curvas, quicando nos buracos, pesando no sinal fechado.

Chegamos. O PM alerta:

– Tá lá embaixo... Tem que descer uma trilha complicada...

Coço o cabelo por debaixo no boné e penso: agora deu a peste!

E lá vamos nós, pelo meio do mato, uma trilha estreita, o jabá me puxando para baixo e as minhas pernas bambas lutando contra a gravidade. Sufoco. Suadeira. Galho na cara. Escorrego. Passamos por um despacho velho de macumba e chegamos a um campinho de várzea aterrado por cima da mata e que tinha uma vista estonteante do litoral de Olinda.

A vítima estava sentada num barranco rente à lateral do campinho, colado ao jogo. Seria como o dono de um ingresso de primeira classe. O assassino chegou, deu-lhe um tiro na cabeça e outros pelo resto do corpo. E lá mesmo ficou o defunto, sentado, estático, civilizado torcedor de cabeça arrombada. Umas crianças vieram jogar bola e acharam o cadáver. Comunicaram aos adultos e seguiram jogando, lúdicos, sorridentes.

O morto era da mais perfeita imparcialidade. O mar estava azul, intensamente azul. A bola corria pelos pés daqueles meninos leves, verdadeiros colibris sem asas. A polícia chegou, revirou o corpo, o rabecão o ensacou, retirou-o de lá na maca e os meninos seguiram jogando, agora com mais espaço. A vista do local era realmente linda. O jabá pesava em cada movimento meu. Se a bola caísse naquela mata vertical, era bem capaz de perder-se – aí seria bronca...

* foto do local do crime.

http://pablodecarvalho1.blogspot.com.br/


sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O homicídio, sempre igual e sempre diferente

O investigador me avisa:

– Delegado, homicídio no Morro da Catita...
– Consumado?
– Consumado. Tiro de doze na cara.
– Vamos nessa.

Chovia, mas não, como na crônica anterior, aquela chuva esporádica. Era uma chuva convicta, de norte a sul e por cima de tudo.

Paramos a viatura ao pé do morro, junto a um grupo de gente desconfiada.

– Bom dia. Morro da Catita?
– Sei não. Moro aqui há pouco tempo. Sei não, vivo de casa pro trabalho, nem quase conheço ninguém por aqui. Pergunte ali na venda...

Mais adiante:

– Bom dia. Morro da Catita?
– O senhor vai aqui direito, passa a pontezinha, pega à esquerda, direita e depois esquerda de novo, acha o clube e segue até em cima...

Adiante, desembarcamos e lá estava uma ladeira enorme, coberta daquela lama covarde que faz o sujeito patinar de braços abertos feito uma espécie de equilibrista donzelo.

Uma senhora sai do quintal e fala:

– Doutor, quer um guarda-chuva emprestado?
– Quero sim, minha senhora; obrigado!

E lá vamos, as pernas abertas, fechadas, pé ante pé, passo aqui, passo acolá, uma camada de barro acumulando na sola, cai-não-cai, eita!, ôpa!, olha!, vixe!, segura!, agora foi quase!, e o povo achando graça: é bom ver umas autoridades passando aperto. Chegamos sem queda, amém.

Olho pela porta do barraco. A vítima está deitada feito uma jia, os punhos cerrados, com o rosto arrebentando, mas ainda rosto.

– Terá sido mesmo doze, pessoal?
– Acho que não. A doze teria virado a cara dele ao avesso. Tá mais pra soca-soca. Ou pode ser uma munição fuleragem...

Faz sentido. O tiro de doze traz em si uma abocanhada. Leva sempre, quando encostado, um naco bom de carne, que seus dentes de chumbo (lembrei-me de um samba sobre a solidão...) mastigam e do bolo deformado fica uma inumanidade: a falta do crânio, do rosto, do braço, do coração...

A imprensa chega. As pessoas começam a reclamar alto:

– Aqui falta água! Seu repóti, cadê a prefeitura? Se quiser dou intrevista!

As primeiras informações:

– Era viciado. Bebia muito. Gostava de mulher, e não deixava passar nada: aquelas mulheres noiadas, caça-rato, ele não perdoava nenhuma.
– Traficava?
–Não se sabe. Ontem à noite, antes um pouco do crime, estava bebendo na bodega de Nivaldo.

Sobe lameiro um pouquinho mais, bate-se à porta de seu Nivaldo.

– Como foi ontem? Teve confusão?
– Não sinhô. Ele tava com Quati bebendo, mas saiu antes de Quati; era um cliente calmo. Nunca fez confusão com ninguém.

Desce lameiro, bate-se à porta de Quati. Quati, alcóolatra evidente, está fumando e se tremendo todinho, e exala uma catinga de cachaça que chega a dar tontura. Puxando as lembranças da bebedeira, com aquele olhar vago de ressaca, ele retira uns painéis dessa confusão mental que é rebarba de pileque, e diz:

– Era um cabra bom, não era de confusão. Saiu antes de mim. Escutei o tiro, mas pensei que era só tiroteio.

A mulher de Quati, preta, miúda e conformada, acompanha a entrevista do oitão.

– Usava droga, traficava?
– Se fazia isso não sei, ne nunca vi. Só cana mesmo eu tomava com ele e de vez em quando...
– Ele tinha mulher, namorada?
– Quando bebia falava de uma tal Verônica, que mora acolá...

Puxou uma tragada com a mão trêmula, o braço feridendo de pinguço, e olhou para o horizonte.

– Obrigado.
– Por nada.
– Posso usar seu banheiro?
– Pode sim senhor.

Casa de favela parece que não abre nunca: tem aquele cheiro de acumulação, aquele bafo forte que mistura comida, poeira, mijo e tudo quanto é mobília e coisa usada.

Desce lama, escorrego, chega-se à casa de Verônica. Mas, no trajeto:

– Aqui falta água! A prefeitura abandonou nóis!

Apareceu uma nesga de sol. Subiu aquele calor pegajoso. A lama ficou ainda mais traiçoeira, e a juntar nas botas da gente com mais volume: ficamos meio como astronautas patéticos.

A casa de verônica tinha umas flores bonitas na entrada. É impossível vê-las e não cair em pieguice: uma flor brotou no monturo!

Um pouco acima, uma velhinha abriu as janelas de seu barraco e pôs-se a fumar em elegante placidez.

Sai Verônica. Gorda, tatuagem no braço, tranquila. Mãe de três filhos.

– Verônica?
– Sim.

Passa uma mulher e diz:

– Tô sabendo que você tá de bucho de novo!
– Tô não, minha filha. Tomei um comprimido e desceu tudinho!

Risos em comum, e prosseguimos:

– Você era namorada da vítima?
– Eu não. Ele vinha aqui, a gente bebia, ficava e depois ele subia pra lá pro barraco dele.

Olhei novamente para as flores.

– Você sabe como isso aconteceu?
– Eu...

A imprensa vinha descendo. Alguém nos interrompe;

– Pobre sempre se arromba! Cadê nossa água? Cadê a prefeitura?!

Verônica prossegue:

– Eu não sei não. Vieram me dizer, aí fui lá ver, fiquei incrível e voltei pra casa...
– Ele era viciado, traficava, tinha inimigos?
– Que eu saiba, não.
– Seu ex-marido tinha ciúmes?
– Tinha não. Até os dois se falavam, assim, passando, tá entendendo?
– Sei... Obrigado.

Saímos, conversando:

– Meu velho, essa investigação tá de rosca...
– Tem que aprofundar mais devagar, na delegacia...

Voltamos ao ponto de desembarque. Devolvi o guarda-chuva à gentil senhora. Nossos pés estavam cobertos de lama, pareciam tijolos sem fornada. Antes de entrar na viatura abri os jornais sobre o assoalho, para não emporcalhá-lo, sentei-me e plantei minhas botas nas manchetes do dia.

*fotografias do local dos fatos.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Duas mortes, uma morte.


Esses dias emendei dois plantões no Departamento de Homicídios. O primeiro foi à noite, no qual eu costurei outro que foi da manhã até a tarde do dia seguinte. E estava eu no primeiro plantão, naquele sono de chão de delegacia, que é nem dormir nem estar acordado, quando aparece a primeira ocorrência. Mochila nas costas, subo na viatura e a viatura sobe na favela. Desembarcamos. Em torno ao cadáver, uma multidão se espremia, com toda fauna humana possível nela: criança velho fofoqueira papudinho noiado traficante doido quenga bicha crente sapatão vigilante adolescente pastor candidato peladeiro emo nenê aleijado operário rapper cabelereiro aposentado estudante motorista cobrador albino gari rebelde sem causa etc. ao cubo. Pois bem. E lá estava o protagonista: menor de idade do sexo masculino envolvido com o tráfico alvejado por dez disparos de arma de fogo, efetuados por dois elementos em uma moto: modo clássico, produção industrial contemporânea, defuntos em série.

Começa a cair uma chuva, meio isolada, de uma nuvem sozinha em céu aberto. Faz um vento gostoso na favela.

De repente, a multidão cede espaço, as cabeças vão se afastando e abrindo vaga a uma romaria de apenas três mulheres: à esquerda, segurando um braço da mulher ao centro, a irmã da vítima; à direita, segurando o outro braço da mulher ao meio, a cunhada da vítima, e entre elas, paralisada da cintura para cima, vem a mãe da vítima. E quando ela, por detrás do cordão de isolamento, vê o filho morto, a imagem que entra por suas pupilas desperta de cabeça abaixo o corpo antes paralisado de pavor, e os berros desatam por dentro de tudo:

– Ai meu Deus; ai meu Deus, meu filho!... Meu filho, meu fiiilhooooooo!!! Levanta, meu filho; ai meu Deus que dor!

Ela invade o isolamento, mas é contida pela Polícia Militar.

O rabecão já sobe, e é um bicho de olhos em brasa que vem recolher a presa alheia – hiena de plástico e lata.

A chuva ainda cai, mas rareia.

Exausta, a mãe da vítima sentou em um tamborete e rumina consigo, um muxoxo quase imperceptível:

– Levanta, meu filho; ai meu Deus que dor!...

Os peritos retiram o lençol que cobria o cadáver e tateiam sua pele à procura de orifícios de entrada e saída, e seus bolsos à procura de documentos, drogas e outras coisas da mobília regular de cordeiros tais e sempre assim imolados.

Ao ver o corpo de seu menino sofrendo profanação, a mãe berra e parte para cima:

– Meu filho; meu filho! Soltem ele! Levanta, meu filho!!!

As mulheres a contêm, e é preciso três contra uma para reter a força que o desespero desdobra.

Num estertor, na última explosão de agonia, sofrendo a maior estocada de dor que o coração humano pode aguentar, quando a foz do martírio faz a mente perder-se no pesadelo da realidade, ela berra, antes de desmaiar:

– Está chovendo; tirem ele da chuva...

E desacorda e cai, flácida, pedindo para acordar em outra verdade.

Ouço risos na multidão. Olho para lá. No meio de uma algazarra danada, as pessoas tapam as ventas com a mão e exclamam:

– Peido do caralho!...
– Puta que pariu, peidaram!

Alguém confessa, às gargalhadas:

– Comi feijão estragado...

Para de chover. O IML ensaca o corpo. Fica o sangue descendo a ladeira. A mãe da vítima desperta.

– Meu filho; não levem meu filho! Ai meu Deus, que dor!

Volta a desmaiar. Alguém a leva para dentro da casa de alguém.

A imprensa já havia gravado os fatos que levaria para vender em sua prateleira de desgraças, na obrigação de noticiar e desculpar-se assim: o portador não merece pancada.

Deixamos a dor alheia por lá, em seus último suspiros, e retornamos ao Departamento.

***

Acordo às 5h30 da manhã. Será verdade, uma só ocorrência, a do cara que levou dez tiros? Que bom...

Com o corpo meio amassado, a boca pastosa, levanto, escovo os dentes, preencho a papelada, tomo um banho, uma tonelada de café, enfio o garfo em inhame, queijo coalho e ovos, e volto ao serviço.

Leio os jornais: Marina Silva dispara na corrida presidencial. O futebol anda mal. Nada novo no mundo das artes. Há o eterno desconforto dos homens com a vida urbana. Mataram um cão incendiado; exige-se justiça. O mundo está violento. Luta-se pelo direito de abortar. O telefone toca.

– Delegado Pablo?
– É ele.
– Ocorrência em Maranguape II. É um senhor de idade. Talvez morte natural.
– Ok. A caminho.

Volta essa chuva litorânea peganhenta, que surge sem aviso, fica pouco e chateia muito, feito visita de vizinho em dia de domingo.

A viatura alcança o setor com dificuldade, depois de rebolar em muita lama, e lá está o cadáver, debaixo de seu lençol, e eles sempre estão assim, cobertos e em falso sono, que a visão da morte é ao mesmo tempo deliciosa e insuportável aos olhos povo.

Num canto, a ex-mulher da vítima, muito mais jovem que o defunto, segurando um guarda-chuva enorme, desses de barraca em beira-mar, olha para ele e chora.

– A senhora é o quê do morto?
– Ex-mulher.
– Foi morte natural?
– Não. Eu estava em casa e escutei os tiros. Isso foi ontem à noite.
– E por que não avisou logo?
– Fiquei com medo de sair de casa. E aqui o sinal de celular é ruim.
– Ele era como?
– Um homem bom. Mas quando bebia ficava bravo e dava em cima da mulher dos outros.
– Mexia com drogas?
– Não senhor. Bebia muito e fumava. Era lanterneiro.
– E a senhora é separada, não é isso?
– Sou sim senhor.
– E separou-se por quê?
– Ele me batia muito.
– Alguma informação sobre esse crime?
– Alguém deixou flores na frente da minha casa durante a madrugada, deve ter sido quem matou ele. Ontem, ele estava bebendo no Bar da Gorda. Ah, ele tem tuberculose... Mas eu não sei quem fez isso.

Um policial avisa aos peritos e homens do rabecão:

– Pessoal, a vítima tem tuberculose!

Luvas, cautela e afastamento.

O defunto está deitado de bruços, em total rigidez cadavérica, e quando o perito muda sua posição ele fica imóvel e plano, duro e concreto de barriga para cima, como se contivesse uma pedra invisível (talvez o céu), como se todo o peso do presente real desta manhã que ele não vê mais tentasse esmagá-lo contra o chão, forçando o enterro desde já – esperar por quê?

Notas, fotos e registros findos, essa foi a última diligência deste dia chuvoso. Foi um plantão excepcionalmente calmo. Talvez a chuva...


(*Ilustrações: fotos batidas pelo autor em seu celular, nos reais locais dos fatos que acima viraram crônica)
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sábado, 30 de agosto de 2014

Marina, Dilma, Aécio, Eduardo e Paulo: as ficções da realidade.

A trágica morte de Eduardo Campos lançou o Brasil inteiro a uma reviravolta que nos deixou perplexos. Aqui em Pernambuco, o espanto é ao mesmo tempo federal e estadual. Nem a mente mais criativa jamais imaginaria um fato tão improvável (o acidente) mudando a história de um país de ponta-cabeça, contra toda análise possível.

Eduardo morre e Marina surge das sombras com uma série de características cuja combinação é o pesadelo dos adversários. Marina não tem um passado que fede a lixo, como é o do PT, nem traz em si a fama de direita-reacionária, essa lepra abstrata que inocularam na reputação do PSDB. Nem também tem a fama de oportunista que tanto calha ao PMDB. O PT e seus militantes ameaçaram criar o caos no país caso Aécio vencesse, mas essa ameaça não cabe contra Marina, que é semente da mesma árvore, que é esquerda mais à esquerda. Marina tem uma história de sofrimento, pobreza e superação, tão ao gosto do coitadismo nacional, que ama o Lula pau-de-arara e a Dilma torturada. Mas não ficamos apenas por aí: a vida de Marina aglomera o sofrimento das florestas, dos empregados domésticos, dos militantes assassinados, da mulher e negra e que – pasmem – intelectualizou-se, o que falta a Lula no currículo e a Dilma na capacidade. Ah, sim: ela é uma mulher religiosa. Que “personagem” infernal, essa Marina Silva (Silva vem de Selva...), e que enredo fantástico a fez roubar a cena! (Vejo a agenda dos candidatos: Marina se reúne com usineiros e defende a indústria do açúcar e pede que ela se desenvolva, mas que respeite o meio ambiente; Dilma se reúne com defensores da reforma agrária militante, amarra um lenço ao pescoço e discursa...).

Na minha humilde análise, não há como a “personagem” Marina Silva deixar de vencer esse drama eleitoral, salvo a improvável reviravolta dentro da reviravolta, numa espécie de esquizofrenia do senhor Acaso.

Em Pernambuco, a morte de Eduardo massacra o povo por uma semana, e essa tortura de colher pedaços do corpo de um pernambucano dilacerado (falo com total respeito e ainda enlutado pelo ocorrido) e sonhador aumenta o sentimento de amor e o de gratidão, temperados com o fermento da exposição das qualidades de Eduardo como pai de família dedicado a cinco filhos. Automaticamente (eis de novo a mágica mão de nosso roteirista invisível!) a imagem de Paulo Câmara é associada à orfandade dos filhos de Eduardo, meio como um órfão político, e ser grato a Eduardo é cumprir uma espécie de último desejo do morto: eleger Paulo Câmara. Daí, seus números explodem e ele passa a ser um concorrente parelha a Armando Monteiro, saindo do ostracismo junto com Marina Silva, cuja liderança à corrida presidencial, aliás, também é reforço pesado à candidatura de Paulo.

(A Copa do Mundo, perto de um “espetáculo” desses, passou a ser um nada dentro de nada, uma diversão vulgar...)

Eu ainda não desci totalmente de meu espanto, e portanto não tenho uma posição quanto às consequências de tudo para os próximos quatro anos, e nem sei mesmo se tenho competência para firmar um entendimento sobre tais complexidades. Mas, como creio em Deus, rezo.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O cavalo em nós


Um homicídio em Cavaleiro (não a cavaleiro, mas em Cavaleiro, Jaboatão, Pernambuco).

Desloca-se a equipe do Departamento de Homicídios. A noite está turva, fria, úmida que só. Há uma chuva que vem, molha a vida e se retira, como o choro do povo em romaria ao enterro de hoje: dos corpos de Eduardo Campos e seus acompanhantes no voo que virou desgraça. A tragédia também é aqui: morte por disparo de arma de fogo em Cavaleiro.

Entramos na casa. À esquerda da porta da frente, o cadáver de um jovem de dezesseis anos, viciado e envolvido nos hábitos do vício: furtos etc., está caído na quina, com três tiros na cabeça, um no peito e outro nas costas – pelo menos foi o que deu pra contar na hora. O atirador entrara, afastara a mãe da vítima, que havia, coitada, aberto os braços em cruz e exclamado: é meu filho, o que houve?! E depois, mãe à esquerda e filho em destaque: tan-tan-tantan-tan!

Lá fora, mãe e irmãs do morto gritavam enormemente contra a noite de chumbo: meu Deus é mentira! Meu filho; meu irmão, ai que dor, ai que dor! Levem ele não; levem ele não! Ai, meu Deus, por quê? Que dor; ai meu Deus que dor!

Dentro da casa, que estava fechada por causa da chuva, tudo cheirava a sangue, lama e comida barata.

Entra um parente, olha o defunto e lastima: ô meu velho, por quê? Eu te dei tanto conselho!

Longe dali, no cemitério de Santo Amaro, Eduardo Campos jazia, recém-sepultado, e a perplexidade do povo pernambucano podia enfim fixar-se em algo real: a lápide, a terra e o epitáfio. A tristeza, galopante por todo o Estado, caía por fim como um pano preto que estivesse agitado por uma tempestade e agora pousasse, em silêncio e dor, por cima de tudo.

– Meu Deus é mentira! Meu filho; meu irmão, ai que dor, ai que dor! Levem ele não; levem ele não! Ai, meu deus, por quê? Que dor; ai meu Deus que dor!

Os peritos catam projéteis, o IML chega para recolher o corpo, o sangue começa a engrossar, e faz noite total, de chumbo absoluto em tons relativos. A mãe do filho morto desmaia. A imprensa chega, e vejo refletores. Um vizinho entra e, olhando o morto com ternura, sentencia, em tom superior de espectador duplamente privilegiado:

– Meu irmão, tô chegando agora do Palácio da Princesa (sic), do enterro de Eduardo Campos. E agora esse outro negócio aqui...

Um cunhado da vítima diz:

– Eu vi o enterro pela TV. Que coisa triste, mô véi...

Estufando o peito, olhando para o cadáver no chão com um pouco de desprezo e alguma vaidade ferida, ele arremata:

– Mas eu estava lá, EU estava lá! Eu vi a tristeza do povo, mô véi, eu vi PESSOALMENTE! Veja aqui (aponta para um adesivo colado ao peito, com a foto de Eduardo Campos, no qual bate com a mão direita); veja aqui! Eu fui lá ver; EU vi o velóro!...

Com a mão ainda no adesivo e com aquela discreta mas indisfarçável superioridade que costumam ter os viajantes ante quem apenas lê sobre os países que eles visitaram, olhou novamente para o viciado banhado em sangue. Cedeu espaço ao IML, que ensacou o cadáver e partiu – e partimos.

A mãe e as irmãs ficaram chorando. A noite continuava escura e chuvosa. A uns poucos quilômetros dali ainda se poderia sentir no ar o cheiro da pólvora dos fogos que explodiram em homenagem a Eduardo Campos.

Aquele cheiro de pólvora ainda estava nas narinas do homem (aventureiro dos infernos) que havia, pessoalmente, testemunhado a desgraça do povo.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Brutus pensando.


O busto de Brutus, de Miguel Ângelo, olha por cima do ombro esquerdo. No seu olhar há um paradoxo que esconde e revela um segredo. O olhar é pesar e é medo, mas é também uma seta para o futuro que lhe abriu o ato homicida. Brutus, tal qual um menino, no proibido vê desgraça e vê vida. Que porte nobre ao redor da cabeça pequena! E é somente de Brutus que Brutus sente pena; não de César, que ainda detesta e seu passado enorme é bem que ao assassino não presta, pois anexo à morte. Sua túnica romana é mais nobre que seus cabelos, que seus pelos, que aquilo tudo que cobre. A presilha de ouro vale mais que seu olhar opaco. E mesmo matador, soberbo nobre em maravilha, relincha e sente-se fraco. O busto de Brutus tem olheiras fundas, e uma testa tensa: é o remorso que vem em ondas e não a cabeça que pensa – e pondo o escrito as almas desnudas, chamo-o Brutus e poderia chamá-lo Judas.




sexta-feira, 11 de julho de 2014

O Deus cotidiano

Também me sinto, como o poeta Ferreira Gullar, “um homem comum/de carne e memória/de osso e esquecimento...” Além de me sentir assim, sinto-me também como um místico ser espiritual preso à matéria e em luta contra a dor e a ignorância. Existirá contradição nisso? Muitas respostas, muitas respostas; nada é simples...

Vejamos o que me dizem as coisas ao redor da música:

Hoje é sexta-feira. Sentarei meu corpo material e cansado, vestido nesta roupa real e surrada, em um banco de varanda duro como concreto, e olharei para a lua e para as estrelas, feitas de pedra e fogo. Porei ao lado de mim um isopor que um dia foi petróleo, cheio de gelo incontestável e garrafas de cerveja que eram areia e cevada de verdade e em terra sólida. Tudo isso, não vê quem não quer. Depois de um gole, acenderei um cigarro (falecido tabaco, flora extinta) e ligarei o som. A melodia entrará por meus ouvidos, o álcool volatilizará algo em meu sangue, e a fumaça desenhará no espaço adiante formas sutis e cheias de mistério. Algo ascende e se transforma antes mesmo do pileque: comitivas da lua e das estrelas descerão do céu e entrarão por minhas pupilas, cravando-se por todo o teto de meu crânio como pela abóboda de uma catedral. Meus dois olhos serão as portas de um salão de dança logo abaixo dessa abóboda. Meus ouvidos serão as entradas laterais da coxia. Abstraídas de sua harmonia matemática, as músicas que ouço atravessarão a fumaça de meu cigarro e colherão de suas formas umas espectrais imagens de beleza que bailarão pelo salão que imagino. Hei de fechar os olhos, entendendo a transição e a vinda de um segundo tempo presente, belo e indecifrável. Reabrindo-os, olharei para minha mulher grávida, que entra em casa, para minha filha, que sorri (uma explosão de amor e luz), e perceberei que algo inacreditável se passa e vem de longe: que toda essa elevação íntima não reside na evolução lógica das coisas, nem a antecipa, nem vai buscar nada no passado. Isso é e existe em um lugar distante, acessível pela intuição, mas inexplicável pela palavra e seus aleijões. Lá está e é algo que insinua vagamente alguma característica do que chamamos Deus – insinua-o também a palavra beleza. Desse país partiu, como em pau-de-arara, o homem espiritual para habitar o homem de carne, que, míope, vê o contorno do Distante e se emociona, dilacerado entre o amor ao presente e as saudades de casa.

terça-feira, 6 de maio de 2014

A destruição da Música Brasileira - a destruição da palavra.

Quanto mais dificuldades tivermos para lidar com as palavras, mais dificuldades teremos para pensar; quanto menos pensarmos, mais idiotas e manipuláveis seremos – é o óbvio que quase ninguém mais percebe.

Não gosto do termo MPB, porque na cabeça das pessoas ele exclui o Rock e tantas outras manifestações populares verdadeiras. Assim, usarei a expressão Música Brasileira. Pois bem.

Quando a gente ouve uma frase genial de um Cartola (“abismo que cavaste com teus pés”), de um Guilherme de Brito (“tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”), de um Djavan (“o amor é como um raio, galopando em desafio; abre fendas, cobre vales, revolta as águas dos rios”), e de tantos outros grandes compositores do Brasil – a lista é gigantesca –, sabemos automaticamente que as gerações que viviam ouvindo aquelas canções eram mentalmente sãs. O produto revela o consumidor.

Não é segredo para ninguém que o Brasil vive, há décadas, um processo de emburrecimento coletivo, de dominação política radical (pelos brutamontes da extrema direita, antes; e agora pelos papagaios fanáticos da extrema esquerda), e de relativização de coisas como a beleza, o talento, a justiça, a infância etc. O Brasil levantou seu próprio paredão cultural e abriu fogo com violência contra o cérebro de seus filhos, na intenção de transformar gente em gado. E quem foi a primeira vítima desse pelotão de fuzilamento? A Música Brasileira! – pelo menos não vi outro cadáver antes desse, embora agonizem na fila de espera as religiões, a filosofia e as artes em geral. Sim, os fuzileiros da estupidez mataram a pobre música primeiro porque ela, além de se ser frágil como um passarinho, é a arte que atinge mais rapidamente o coração do povo.

Quem não consegue articular uma frase, não consegue articular um pensamento. A música que se cria e se vende hoje no Brasil (salvo raríssimas exceções), a música de produção contemporânea e consumo generalizado, é um sintoma muito grave de estupidez porque demonstra que o povo está perdendo a capacidade pensar; que estamos regredindo a bestas fundamentais que apenas repetem frases-prontas, cada vez menores e mais vulgares.

Gradualmente, a palavra é tirada do povo Brasileiro, e em breve, se as coisas não mudarem, a comunicação será feita apenas por urros, latidos, ganidos, miados e flatulências. Depois, bastará uma chibata na mão de uma tirania, como uma batuta estalando nas costas do povo, que será só uma terrível orquestra de silêncios.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Vivo em um mundo...

(O dedo em riste, imagino-me proferindo essas palavras para uma platéia gigantesca, embora saiba que só há meia dúzia de pessoas na arquibancada)

Vivo em um mundo em que cientistas afirmam sonhar com o cruzamento entre um ser humano e um chimpanzé, para criar uma nova espécie e desmoralizar sua própria espécie – talvez eles desejem mesmo é ter uma platéia mais obediente, menos humana.

Vivo em um mundo em que uma jornalista é caluniada, ameaçada de estupro, censurada pelo poder político e (quase) toda a imprensa cala, negando-lhe os direitos de ser humano e a condição mulher agredida – ainda aqui, o desejo de reduzir o ser humano a algo menor.

Vivo em um país do mundo cujo governo e vários artistas e intelectuais criaram carreiras batendo no peito o orgulho de terem sido perseguidos pela ditadura militar, mas que patrocinam e paparicam desavergonhadamente ditaduras muito mais sangrentas e totais que aquelas sob as quais padeceram – novamente, é reduzir gente à condição de bicho em cativeiro.

Vivo em um país do mundo em que pessoas boazinhas, de sorriso franco e flores nas mãos, vão às ruas e criticam duramente uma palmada que um pai ou mãe possa dar num filho; que chamam de desumanidade atroz o ato de cortar o rabo de um cão, mas que carinhosamente chamam de liberdade o direito de a mãe poder arrancar um bebê ao ventre – seguimos na esteira ao contrário: o ser humano convertido a bife.

Vivo em país do mundo em que o negro, tão injustiçado pela história, lança mão às cotas que o governo lhe dá e vira as costas aos não-negros pobres, excluídos, favelados que não têm direito à mesma cota, transformando-se o negro em autor de injustiças semelhantes às que sofreu – sempre e sempre: o ser humano catalogado como em zoologia, e dividido em currais.

Vivo em um mundo em que militantes da paz vão à televisão e criticam Deus e o mundo pela violência nascida pela proliferação do crack, mas que defendem a legalização da maconha e fazem propaganda do lúdico universo, da belíssima vida que vive quem costuma “viajar na maionese” – pensando que viver é a arte de dar milho aos pombos.

Vivo em um mundo em que há a Marcha Contra a Família, a Marcha Contra as Religiões, a Marcha Contra a Opressão Moral, por parte de gente que absolutamente não está impedida de viver fora da família, sem crença alguma e em total liberdade sexual e que, clamando por tolerância, tenta destruir as convicções dos outros – mais uma vez, a apologia da bestialidade.

Vivo em um mundo (vasto mundo), em que exemplos como os acima poderiam estender-se longamente, quase ao infinito, e tão mais longa será a lista deles quanto menor for a capacidade de as pessoas se manterem lúcidas neste mundo.

(Suspiro, cansado e impaciente. De longe, vem o som de um piano triste, para acompanhar o esforço final)

...Vivo em mundo em que uma multidão de gente se idiotiza, que se bestifica, que se vulgariza, e que em breve terá apenas a capacidade de babar e morder, como um cão raivoso...

Em torno de Deus

Muitas vezes, sábado à tarde, sozinho na varanda de casa, cigarro numa mão, cervejinha na outra, fico olhando para as nuvens e pensando:

Alguns intelectuais contemporâneos dizem que o ser humano é o seguinte: um mero fruto de moléculas em colisão aleatória, sem livre-arbítrio algum, já que sujeito passivo das forças físicas da natureza. Essas moléculas teriam nascido de átomos gerados, do nada, numa explosão a que chamam Big-Bang. Ou seja: somos uma mera pilha de átomos que se juntaram ao acaso e foram se aperfeiçoando por milhões de chatíssimos anos, sem propósito ou finalidade. Tudo é matemática, tudo é fruto de ação e reação mecânicas, e nada há além disso. Quando essa pilha de coisas se decompuser, será o fim: a escuridão total e fantasmagórica...

Para começo de conversa, acho que essa receita não é lá muito boa para convencer gente acostumada à contemplação da beleza – da qual esses pensadores estão, certamente, distantes, porque não posso acreditar que um contato verdadeiro com o encanto elevado e sublime de uma obra de arte, do amor, da criação pessoal, da maternidade, da forma estética, do altruísmo etc. tenha nada a ver com animais mais fortes devorando os mais fracos. O que vejo, cada vez com mais clareza, é o seguinte: o nada (Verbo) criando a matéria, esta criando a vida, a vida evoluindo em estética (ou um tigre é feio e um tiranossauro, belo?) e alcançando a racionalidade; a racionalidade criando a capacidade de entender a Divindade, essa capacidade entrando em contato com a Divindade (lentamente, hoje ainda com as pontas dos dedos), e na seqüência teremos um contato mais direto com essa Realidade Suprema, coisa que não podemos ainda imaginar, como não imaginávamos poder haver uma sinfonia enquanto batíamos pedra nas cavernas. Ou seja: tudo é uma projeção vertical e evolutiva que tem a marca do Sublime. Onde? Repito: na silhueta da águia; na projeção da melodia; no símbolo maternal; no sentimento assombroso do amor e em coisas que a palavra não alcança. A lista é infinita.

Às vezes, penso-me pensando como um materialista: nasci de uma explosão que veio do nada, eu não tenho livre-arbítrio, minha arte é fruto de aleatórias coisas mecânicas, minha capacidade de pensar (inclusive de pensar que não tenho capacidade de pensar) é uma ilusão, e quando eu morrer mergulharei no nada. Primeiramente, dá vontade de ser assassino: já que é assim, que nada tem conseqüências nem para mim nem para minhas vítimas, posso matar todos de que não gosto! Posso também roubar de todos, libertar minha bestialidade e ter uma vida esbaldada na mais aberta orgia! Posso praticar qualquer atrocidade, em nome de qualquer causa, já que tudo no final será só escuridão... E o melhor: tudo é culpa do acaso, do qual eu (coitadinho) sou vítima também! Eita, coisa boa: o pecado sem castigo (ouço rojões no ar), o crime sem remorso! Mas aí, dentro de mim, cresce uma tristeza, e me dá uma dor no coração e outra no cérebro... No coração, a que diz: eu não posso maltratar essa mulher, essa criancinha, esse homem de bem!... O que é deles não me pertence... Eles têm alguma coisa doce, um chamamento muito além do fato de terem moléculas na base... Há amor no mundo! Eu não suportaria feri-los, meter a mão nas coisas deles... Pigarreio: mas, ora, se tudo é matemática, tudo já está agendado e não foi você quem fez nada; foi só o movimento das leis de ferro da física, meu bom camarada!... Êpa!, grita e depois me pergunta o cérebro: vamos ver esse negócio que diz que tudo é matemática com calma, cabra safado! E a física quântica, que vive numa dimensão tão incrivelmente pequena e misteriosa que a matemática determinista (esse lego da filosofia) lá não se aplica? Nã-nã-ni-na-não: a matemática é um “intermundo”, existe apenas numa camada, meu jovem! Quem garante que minha mente não seja algo tão abstrato e imaterial quanto esse universo microscópico quântico, e que a ela também a matemática não se aplique? Não confie no pensamento alheio tão facilmente, meu chapa! Sim, Pablo velho, porque sua mais profunda intuição clama, grita, berra pelo livre-arbítrio e você jamais conseguirá sentir-se livre do peso de uma injustiça alegando que o determinismo dos átomos o desenhou para sacanear os outros!... E tem mais: se, como dizem os astrônomos, o nada não existe, como pode sua consciência descer ao nada, de onde ela não pode ter saído? E ainda, cara (pense, não se conforme!): dizem que, antes do Big-Bang, não havia tempo nem espaço, e portanto não havia um lugar para Deus. Mas como pode ocorrer uma explosão fora do tempo? A explosão é um acúmulo de tensão (ummmmmm e... tebei!!!!) e só no tempo a tensão pode se acumular... E as dimensões fora do tempo? E outra (começo a querer me dizer: e outra, seu idiota!, mas me contenho), seu cabra: se você é uma fórmula matemático-arquitetônica, e se o tempo é relativo, quando, no infinito do universo (ou dos universos), essa fórmula se repetir, você (shazan!) abrirá os olhos novamente! De todo jeito, não tem essa de “eterna escuridão; eterno silêncio; descanso eterno”, entendeu? A escuridão é um conceito de quem está vivo e pode compará-la com a claridade, sacou? O silêncio só existe em face do som, que só é escutado por quem vive, não é isso? Só dorme quem está em intervalo para despertar, seu animal!

Ligo o som, volto a relaxar e concluo:

Eu já fui um jovem (nem faz tanto tempo...), e quando eu era jovem acreditava em tudo quanto me diziam, e meu inconformismo era conversa fiada, era mera comodidade e preguiça mental disfarçadas de revolta. Revoltado, revoltado mesmo eu me tornei quando adulto, aqui parado e silencioso, a testa enrugada, lutando contra tudo e contra todos.




segunda-feira, 7 de abril de 2014

Crônica para os homens leves

Algumas pessoas têm reclamado deste cronista (principalmente quando ele está ausente), por ele ter perdido uma antiga leveza, juvenil e flutuante. “Pablito virou Pablo! – Pablito é leve; Pablo é pesado...” – dizem, pegando carona na sonoridade, as costas de uma mão no rosto, olhando à esquerda e à direita. Mas há verdade na malícia deles: tenho escrito coisas pesadas, porque no Brasil os cérebros, as ideias, a velocidade das coisas, são todos grandes elefantes – diria mais: elefantes de muleta. Eu é que fico completamente assombrado com a capacidade deles, os arautos do bem-estar, os que só têm carnaval no sangue, de continuarem leves diante desse estado de coisas: saltitantes como bailarinas russas, mandam um beijinho ao patrocínio do Brasil às mais terríveis ditaduras e aos cínicos atentados à democracia brasileira (o Estado Democrático de Direito, esse saco de cimento!) perpetrados pelo próprio Governo deste País (o PT, esse travesseiro de penas de ganso!). Dão um salto mortal altíssimo, caem abrindo escala, abrem os braços e, levemente, dizem: “Viva Cuba!” Aéreos, primaveris, agrupam-se como em bandos de borboletas imperiais e, com vozezinhas finas e infantis, saem pelas ruas e estendem os dedinhos, censurando os homens pesados: “Ai-ai-ai, menino danado, não fume cigarros do mal! Só se for maconha, ein! (e apertam as bochechas do sapequinha).” “Mulherzinha, minha filha, não se preocupe em fazer amorzinho com seu namoradinho sem se prevenir; depois você pode fazer um abortozinho numa clinicazinha bem maneirinha que fica lá numa ruazinha cheia de arvorezinhas; essa clinicazinha, antigamente, cortava rabinhos e orelhinhas de cachorrinhos, acredita?, mas nós acabamos com essa maldade! (e alisa os cabelos da garotinha de doze anos de idade).”

Na era dos homens leves, direitos são andorinhas, deveres são âncoras de petroleiro. Ah, como os homens leves, feito balões juninos, flutuam, alegres, sobre as religiões, caem nelas com sua intolerância, e incendeiam-nas clamando em chamas por tolerância! Feito colibris astutos, sugam o mel do Estado, com bico longo e língua levíssima, e saem a cantarolar: “Somos amigos das flores!” Leves e densos como uma neblina absoluta, protegem os aéreos traficantes, os antigravitacionais homicidas, os aquáticos estupradores, defendem a descriminalização das estelares drogas, e depois reclamam dos policiais de chumbo, da violência ferrenha, das pedras de crack que esmagam seus filhos alados. Leves, leves; bolhas de sabão, bolas de sopro, papagaios, altíssimos urubus: os homens leves estão por aí! A pedofilia é leve. A família é um fardo. A pobreza do povo brasileiro é romanticamente leve. A riqueza de Cingapura, um pesadelo tectônico. A segregação pelo Politicamente Correto (esse zepelim antes do incêndio) deixa tudo leve: raças mais leves, credos mais leves, sexualidades levíssimas! “Roubar por nossa causa é leve; pela outra, vale toneladas!” “A Petrobrás está afundando? É porque é pesada! Leve é ausência de empresas, a ausência empregos, a ausência de riqueza e dos ricos que geram a riqueza!” “O pensamento independente? Never! Pesado demais: não há pescoço que o aguente. Levíssima é a dissolução da inteligência em grandes massas adestradas: leve como um poodle.” – e cheio de pose também, mas com pouco recheio.

Homens leves, como é feio esse céu que os acolhe, e essa alegria com que insultam seus semelhantes! Como é patético esse movimento de vocês, entre cordões de marionete com asas quebradas, sustentando sua leveza nas mãos do oculto absolutismo que agiganta o Estado, O Grande Irmão, que agiganta a pobreza, essa coisa órfã que precisa de homens leves que flutuem sobre ela, como cupidos (ou moscas...) eternamente flechando o coração dos pobres em amor aos homens leves, que só podem ser amados em estrita hierarquia.

Sim, eu reconheço: meu coração sente o peso dos dias e de hoje, e esse peso, para minha lucidez e desalento, não me permite tirar os pés do chão.


sexta-feira, 4 de abril de 2014

O futuro do presente

Sabe bem o que é o amor, o que é amar, aquele que foi arrancado das trevas pelas asas invisíveis que há nas mãos da mulher. E em torno dessa mulher construiu uma casa que tem mil dimensões, mil janelas e amplos quintais latifundiários estendidos ao longo dos sonhos: dia por dentro de dia, trabalhando, assentando as flores, costurando a voz feminina entre nascente e poente, e no sossego da convivência viu essa mulher confundir-se com a própria casa, o próprio tempo, o movimento do peito exausto mas incansável em eterna surpresa, a sorrir: “toma aqui, meu amor, este dia que eu escrevi, e se misture nele, e seja ele também, em seu arco de Sol a Sol, distante e absoluto como o teto de uma capela”.

Eu chego em casa antes dela, da rua onde andei tropeçando em concreto e cadáveres, abro as portas da entrada e suspiro a vida que há no aconchego, toda a arquitetura dividida, maternal na presença das coisas comuns: os sapatos doces dela, suas doces roupas, e a prece que caminha por onde ela anda, na casa que guarda em seu espaço a silhueta suspensa e multiplicada em perfume e lembrança. Sento na varanda, abro uma cerveja, acendo um cigarro e ligo a música; olho para a cidade e penso: “a beleza tem mil faces, a vida é boa porque posso abraçar sua cintura e afundar o rosto em seus cabelos, mas tudo é conteúdo da mulher que um homem ama.”

Depois ela chega, com seu universo de coisas na bolsa e nos comentários, e ela guarda no ventre um filho! Percebo que há dois planetas que giram e completam seu ciclo em volta da da luz: o da criança, metades completas de tudo, e o do casal, tudo completo em metades.

Sorrio. O dia é sexta-feira. Tento dize-lhe: “ você lembra que; que há um ano...” Mas a voz embarga. A bebida, a música, a fumaça dançam... Tomo suas mãos – colho-as, como disse o poeta. O jardim noturno de meus olhos é iluminado pela lua antiga que há nos olhos dela, aquela lua que se divide e se dá, como hóstias, à boca de cada homem que medita e ama. “Há um ano, meu amor, você lembra bem que...?!”

Ela vai para dentro, silenciosa. Ela já entendeu tudo. Eu é que fico na varanda, contente, rebatendo nessas grades eternas chamadas de Palavra, planando nessa imensa liberdade que se chama querer-bem.


sexta-feira, 28 de março de 2014

O espelho


Era cedo quando eu acordei. O café dava fumaça para o espaço, a xícara na mão, a mão amanhecida suspensa porque eu estava parado na varanda do apartamento. Olhei pelas grades da janela. Lá embaixo, uma casa. No quintal dessa casa, uma mangueira. Debaixo dessa mangueira, quatro cadeiras, uma mesa e uma churrasqueira cheia de cinzas. Quanto terá de bem essa sombra, sentar-se nela com amigos, sentir os pés no chão e beber cerveja? A casa está distante. Meus olhos estão presos a imaginar o dia em que eu tive um quintal. Tomo um gole indiferente e volto para dentro. Visto-me, desço e entro no carro. Ligo o condicionador de ar. Pelo vidro, vejo crianças que brincam na última praça do bairro. A praça tem espaço e árvores e as crianças dão-se as mãos. Já não lembro como será o toque da mão amiga, a corrida solta pelo espaço, o sonho projetado na ilusão doce do além das ruas. Como será ser livre para correr sem trazer em si a mácula das restrições? O sinal abriu, seguimos. Vejo o ciclista que passa entre os carros, e dele tenho um dó tremendo e ao mesmo tempo sinto um orgulho humano por ele empurrar seu sonho de impulsão por entre coisas que podem triturá-lo. Sinal fechado. Vejo os funcionários que passam pela frente da igreja também fechada, os muros pichados. Saberão eles fechar-se em oração? Poderei um dia perguntar-lhes: amigos, o que vocês escutam quando juntam as mãos em quietude e inspiram a sensação de existir? Ou a arte de pensar estará deles tão próxima e distante quanto a possibilidade de minha indagação rebatendo dentro do automóvel? Sigo e chego. Subo ao meu gabinete. Diante de mim, em papéis chamados de inquérito, está o drama das pessoas que se espremem e se agridem e não se enxergam justamente por estarem tão empilhadas umas nas outras. Fariam elas tanto mal entre si se pudessem divisar os olhos das outras a uma distância que fosse curta o bastante para o sentimento, e longa demais para o golpe e a injúria? Bate o meio dia. Almoço uma quentinha estreita, de uma comida impessoal, com um garfo mecânico, numa mastigação vazia. Não é tarde, mas é a tarde em sua melancolia que vem bater ponto nesta circunscrição. Correm palavras e ponteiros. Fim de expediente. Volto ao carro e entro numa noite que não vi acontecer (que desperdício, meu Deus!). A escuridão está em tudo, e as luzes dos postes, e as luzes dos faróis, e as luzes dos semáforos só servem para mostrar quão imensa é a escuridão. Chego. Subo. Visto uma bermuda. Em frente ao espelho, noto que minha barba anda crescida, e, tentando sentir o meu rosto, encosto os dedos no espelho.

sexta-feira, 21 de março de 2014

A TEORIA DOS DENTES

Bobagem é achar que os homens de hoje agem conforme a mente ou o coração. Bobagem pura. Criancice. Nem se repita, com patético lirismo, que os olhos são os espelhos d’alma – eles foram sepultados também. A parte central e importante do homem contemporâneo são os dentes. E os dentes, brancos, alvejados em longas sessões no dentista, servem, basicamente, a uma finalidade; melhor, a uma que se divide em duas. Comer é secundário; o imperativo é mostrar os dentes. Mostrá-los como em boca de cavalos, dentaduras em outdoor, víboras de cabeça iminente e corpo afastado. Primeira finalidade: sorrir; sorrir sempre. Sorrir ao acordar, durante o desjejum, no carro, no trabalho, ao sair e ao chegar e até sorrir dormindo. O homem contemporâneo é sorridente o tempo inteiro. O vencedor, o que está bem, o que não pode brigar com pessoa alguma; o homem contrário à contrariedade, superior à dor e à emoção – nem de alegria se permite chorar. Seu sorriso é seu R.G. e o signo maior de sua adesão à eterna superioridade humana quanto ao sentimento da vida. Sorrir. Sorrir. Sorrir! Sorrir diante do crime, da punhalada, da bancarrota, da desgraça que aceita e fomentada. Dar boa noite sorrindo, trancar-se no quarto, enfiar uma bala na cabeça sorrindo e deixar uma sorridente carta de suicida – melhor: meter uma bala no peito, para não estragar o sorriso durante o velório. Sorrir do erro, da crítica, da contradição. E é um sorriso sempre distante do chão por onde os homens caminham. Sorrir é ser altíssimo! Sorrir... É preciso também mostrar os dentes para morder. Morder. Morder. Morder a jugular dos outros, a reputação de alguém; apressar-se sobre o pescoço alheio como um vampiro. Morder. Morder. Morder o sucesso. O imediatismo é uma dentada da moda. Não mastigar nem muito menos ruminar nada (nem pensamento): morder é a ordem, principalmente se o sorriso falha – ou não; pode-se morder por mera questão de preferência. Pode-se, e às vezes é até um deve-se, misturar as duas funções. É sucesso certo, atestado e confirmado pelas capas de revista. Sorrir e depois morder, ou morder e depois sorrir: – Bom dia, colega (sorrindo)! O colega dá-lhe as costas e ele taca-lhe uma dentada. Depois da deglutição volta a sorrir. O ator, o empresário público, o político profissional, o vizinho, o sanguessuga familiar, o intelectual-só-espelho, o que luta por justiça dissolvido em coletivo, todos, todos, todos apenas mordem e sorriem, sorriem e mordem, e tudo é um relativo conceito dentro de um absoluto cinismo. Sorrir. Morder. Pode-se variar a ordem, a intensidade e as repetições, mas não o padrão irrenunciável: o sorrir-e-morder é toda a individualidade de hoje. A síntese obrigatória. A perfeição em dois atos.

Eu, um dinossauro confesso (também, como negá-lo?), confesso que sou daqueles bobos que gostam do azul do céu e da palidez da lua – por extensão, gosto das coisas claras. Tenho um otimismo crônico que insiste em se rebelar contra muito do que escrevo. Gosto de sentar na varanda de casa, acender um cigarro e estalar nos lábios a delícia da cerveja. Gosto de música. Gosto do amor. Minha família é meu encanto. Penso nos outros também. Me emociono, choro. Acho graça, rio. Tenho sorrido e chorado minha vida inteira em plena contramão do gesto e do espírito gerais – mas às vezes também mordo, é duro confessar. Inobstante, tento evitar, com muito pudor, mostrar os dentes. A vida de hoje me causa uma profunda timidez.