Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

O Deus cotidiano

Também me sinto, como o poeta Ferreira Gullar, “um homem comum/de carne e memória/de osso e esquecimento...” Além de me sentir assim, sinto-me também como um místico ser espiritual preso à matéria e em luta contra a dor e a ignorância. Existirá contradição nisso? Muitas respostas, muitas respostas; nada é simples...

Vejamos o que me dizem as coisas ao redor da música:

Hoje é sexta-feira. Sentarei meu corpo material e cansado, vestido nesta roupa real e surrada, em um banco de varanda duro como concreto, e olharei para a lua e para as estrelas, feitas de pedra e fogo. Porei ao lado de mim um isopor que um dia foi petróleo, cheio de gelo incontestável e garrafas de cerveja que eram areia e cevada de verdade e em terra sólida. Tudo isso, não vê quem não quer. Depois de um gole, acenderei um cigarro (falecido tabaco, flora extinta) e ligarei o som. A melodia entrará por meus ouvidos, o álcool volatilizará algo em meu sangue, e a fumaça desenhará no espaço adiante formas sutis e cheias de mistério. Algo ascende e se transforma antes mesmo do pileque: comitivas da lua e das estrelas descerão do céu e entrarão por minhas pupilas, cravando-se por todo o teto de meu crânio como pela abóboda de uma catedral. Meus dois olhos serão as portas de um salão de dança logo abaixo dessa abóboda. Meus ouvidos serão as entradas laterais da coxia. Abstraídas de sua harmonia matemática, as músicas que ouço atravessarão a fumaça de meu cigarro e colherão de suas formas umas espectrais imagens de beleza que bailarão pelo salão que imagino. Hei de fechar os olhos, entendendo a transição e a vinda de um segundo tempo presente, belo e indecifrável. Reabrindo-os, olharei para minha mulher grávida, que entra em casa, para minha filha, que sorri (uma explosão de amor e luz), e perceberei que algo inacreditável se passa e vem de longe: que toda essa elevação íntima não reside na evolução lógica das coisas, nem a antecipa, nem vai buscar nada no passado. Isso é e existe em um lugar distante, acessível pela intuição, mas inexplicável pela palavra e seus aleijões. Lá está e é algo que insinua vagamente alguma característica do que chamamos Deus – insinua-o também a palavra beleza. Desse país partiu, como em pau-de-arara, o homem espiritual para habitar o homem de carne, que, míope, vê o contorno do Distante e se emociona, dilacerado entre o amor ao presente e as saudades de casa.