Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

As águias, as corujas e os abutres.

(para meu amigo Sávio de Almeida)


E estávamos apurando um homicídio tentado, quando o investigador fala baixinho:

– Delegado, chega aqui...
– Fala...
– Um cara ali cantou que tem um tal de Hernandes, que fabrica águias, que disse à vítima que estavam armando uma cruzeta (cruzeta = emboscada, armação, armadilha) pra ela; que ele se ligasse...

Saímos à procura do tal Hernandes, no subúrbio fundo, numa rua cheia de grandes poças de lama.

A um velhinho debruçado no muro:

–Bom dia, Hernandes mora por aqui?
– Hernandes...
– O que faz águias.
– Ah, o que faz águias... Ali, senhor, naquela casinha; ele está lá...

Chegamos. Na entrada da casa, depois de uma cerca velha, a oficina e, sobre uma mesa, um acúmulo de pedaços de marisco que, como num caos primordial, fazia contraste com águias em progresso, ainda sem pés nem cabeças, mas já aladas, o porte elegante em voo, estacionado o quebra-cabeças da mente do artista pela chegada da Departamento de Homicídios.

Num armário velho, alta e atenta, filosófica, uma coruja da mesma mão observava tudo.

– Seu Hernandes?
– Sou eu.
– Podemos conversar?
– Pois não, senhor. Vamos para o quintal...

Atravessamos o oitão bagunçado de sobras de artesanato, de feira, de coisas velhas da vida da gente.

Lá atrás, Hernandes sentou-se numa cadeira de balanço rasgada, dessas de estrutura de ferro enrolada em cordas de plástico – eram azuis. Por cima da cadeira, uma lona fazia tenda, pendurada numa árvore, e mais um pouco à esquerda havia uma rede de balanço, surrada e prestes. Pendurados em cordões nos galhos, CDs brilhavam como a pequenina constelação do artista. Ao pé do tronco, um fogão sem serventia era casa para uma galinha choca. Perto do muro, uma churrasqueira de improviso. Ao fundo, o matagal.

Hernandes sentou-se na cadeira com bastante realeza – era magro, negro e tinha uns quarenta anos de idade. Cruzou as pernas e aguardou em sim.

– Hernandes, nós ouvimos falar que você avisou a fulano que estavam armando uma cocó (cocó = cruzeta) para ele...
– Não foi bem assim, senhores. Eu disse que ele estava bebendo demais, importunando a comunidade, e que acabariam armando para ele...
– E essa tentativa contra ele?
– Não sei quem foi etc.

Entrevista finda, agradecemos e, saindo, perguntamos pelas águias. Cheio de orgulho, ele falou:

– Fabrico com marisco, madeira, a cola tal etc. Daí vendo por sessenta reais a um atravessador que sai daqui e vai vender pros turistas lá em Boa Viagem...

– Obrigado, tenham um bom dia...

Entrei na viatura e olhei para a fachada, onde havia uma plaquinha assim: vende-se tabu. Tabu (sorri sozinho), que coisa...

A caminho, porque era longe a oficina de Hernandes, fiquei matutando: que tristes tempos vivemos! Tempos de homens vazios e violentos, que se pensam um amontoado de carne que desfalecerá dentro de um tempo inútil, numa vida sem razão, afundando no nada. Por quê, como Hernandes, os homens estão perdendo a capacidade de compor águias? Por que danado esses homens não meditam mais, como a coruja de Hernandes? Se muito, desenham abutres nos corações gelados, para devorar a carcaça do dia, para ascender apenas na intenção localizar aquilo é corrupto e afundar o bico nisso.

Hernandes: o homem que, numa manhã trágica qualquer, surgiu no derradeiro subúrbio para me relembrar que o homem é grande, o homem tem águias no coração, o homem, disse-o bem Ariano Suassuna, tem em si uma centelha divina.