Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 24 de março de 2017

UMA BOBAGEM...

Meus filhos, sentem cá com seu velho... Deixem-me folgar minha gravata, pra arejar o pensamento, e me permitam o mau exemplo da bebida e do cigarro - mau exemplo uma cebola!; que se exploda o politicamente correto! Permitam-me ser livre, que a dor da vida isto ao menos me concedeu.

Ajeitem-se em torno de mim... Isso. Eu quero conversar com vocês, com seus olhos doces e seus sorrisos sem mácula, essas levezas que a gente ruim tanto se esforça por corromper...

( um trago, um gole)

Ouvi, muito tristemente, e o ouvi infinitas vezes, que eu, que nós, seus pais, seríamos devedores de vocês porque trabalhamos até tarde, chegamos em casa exaustos e sem candura e não damos a vocês a atenção que vocês merecem! Que coisa, ein?

Porque arriscamos o enfarte, o derrame, a inscrição no analista, o desespero; porque desperdiçamos o tempo de nossa juventude já em declínio, os nós de cabelos brancos, a respiração difícil, nós, NÓS seríamos de tamanha ingratidão que vocês teriam o direito de rebelar-se contra nós, virar o rosto ao nosso beijo, maldizer-nos em público e em privado...

(gole, trago)

Vejam essas mãos sujas de dor... vejam essa gravata, forca moderna de que tenho de escapar todo santo dia; vejam esse engarrafamento, essa cidade cruel, essa gente sem alma, essa ignorância exaltada; vejam a dor da vida!... A vida dói demais; em todo o seu esplendor, dói...

Essa é a dor que engolimos como um cálice de querosene todo bendito dia, pra que vocês tenham paz, pra que vocês tenham infância, pra que vocês tenham vida! E um dia, se Deus lhes der a alegria de ter filhos, vocês caminharão por dentro desse mesmo inferno, felizes como nós, porque é no fogo que se forja o amor, e é do amor que nasce a grandeza, e viver em busca de grandeza é a única felicidade possível...

(trago, gole)

Quando eu lembro do que meus pais fizeram por mim, das horas incontáveis de ausência em que queimaram suas vidas pra que eu tivesse uma vida, sinto por eles um sentimento de dívida e gratidão que, meu Deus!, eu viveria a eternidade e seria incapaz de pagar!...

Não peço que vocês sintam o mesmo por mim... Mas entendam que, na vida, as coisas são o que são! O imutável; vejam o imutável!

Guardem seus corações como diamantes! Sua alma é a única coisa que vocês realmente possuem... Rebelem-se, revoltem-se contra tudo, mas nunca, jamais, em hipótese alguma, contra o amor de quem os ama...

Bons sonhos, meus amores, e que, se eu falhar, Deus resguarde vocês dos monstros contemporâneos, os monstros concretos, inimigos da imaginação e do sentimento.



sábado, 18 de março de 2017

CACHORRO AQUI VIVE MELHOR QUE GENTE - CRÔNICA POLICIAL

- Atento, equipe de homicídios?
- Prossiga...
- Duplo homicídio no Engenho Lua Cheia...
- Duplo?
- Sim...
- A caminho...
E lá vai a viatura pela pista, embalada debaixo de sol e cercada de monoculturas: cana, homicídio, narcotráfico etc.
- Ô, minino!
Polícia, pra saber das coisas, é melhor perguntar a menino; adulto mente que é uma desgraça!
- Sinhô?!
- Onde fica o Engelho Lua Cheia?
- O sinhô quebra às isquerda pela predeira e já dá com ele...
- Obrigado!
- De nada!
Chegando, descemos, eretos e imponentes em passos oficiais, e fomos ver os corpos.
Um deles estava no lado de fora da casa de vila, pelo oitão direito, em posição fetal, com uma profundíssima lesão no pescoço. Por ele, todos carpiam:
- Ou outro é bandido, dotô; mas esse aí é inocente! Ai, meu Deus, morreu de graça!
O chão do distrito era sujo de coisas plásticas sortidas; as casas, miseráveis. Interessante: os cães eram limpos e sadios! Cachorro, aqui, vive melhor que gente.
- Revirem o corpo.
A rigidez cadavérica fez a vítima virar-se em estátua, e quando a parte de seu rosto que estava por debaixo do antebraço veio à luz, paralisada numa expressão de pavor, foi um chororô sem tamanho.
- Esse era trabalhador; batia enxada no roçado comigo! Coitado; morreu de graça!
Um velho albino de camisa aberta, chapéu roto e calças amarradas por um barbante, pegou uma lata de Pitu, deu uma golada e verteu uma lágrima.
Cachorro aqui vive melhor que gente.
Choravam as crianças, reunidas como em ciranda.
As mulheres choravam nos ombros umas das outras.
Os homens choravam e rangiam dentes.
- Morreu inocente! Aquele caba safado; digo nada! Mas esse aí...
As velhas choravam em oração.
Um gato passou, preguiçoso, fabricando silêncio, evitando cautelosamente pisar em sangue.
Gato também vive melhor que gente aqui.
- Rasguem a camisa dele. Alguma lesão? Tiros?
- Não senhor. Só uma facada apenas, no lado esquerdo do pescoço. Sangrou a até morrer.
Chega um investigador, faz um sinal. Debaixo de uma jaqueira afastada, diz:
- Foram cinco. Estouraram a porta, mataram o que está dentro da casa a facadas e vieram com esse pra fora. Esse aí, que todos dizem ser inocente, foi trazido fora pra apontar a casa ao lado, onde estariam três bandidos amigos daquele por quem ninguém chora, que eles também iriam matar. Depois que ele apontou a casa, o matador deu-lhe a facada no pescoço e foi pegar os outros três, mas eles ouviram a zoada e deram o pinote...
- E o que está dentro da casa?
- Morreu sentado. Também de facadas. Arrancaram a orelha dele...
- Vamos lá...
(Imagino a facada no pescoço do inocente, depois da informação dada, e ele estrebuchando, o sangue em bicas, os olhos atônitos vendo pernas se afastarem, a princípio nítidas, depois embaçadas; depois...)
Deram umas dez facadas no abdome do outro, e no tórax. Ele morreu sentado no canto da parede, para tomar lição e deixar de roubar. Ao lado do corte de cabelo moicano, de crista oxigenada, havia um buraquinho de nada, que sobrou da orelha, cuidadosamente extraída, em um corte perfeito, dada por mão controlada e sem nojinho de nada: quem mandou não ouvir conselho!
Na sala, um cachorro dormia, de barriguinha cheia.
A casa é miserável, mas o chão é bem friinho!
Cachorro aqui vive melhor que gente.












sexta-feira, 17 de março de 2017

O Colibri de Deus

A minha fé em Deus é como um colibri verde que eu trouxesse na palma da mão esquerda, sendo que eu sou destro. Avezinha sublime, que se treme toda de medo porque o punho é bruto; os dedos, inábeis; a palma, cheia de culpas.
E é preciso caminhar, caminhar entre a gente, na balbúrdia da cidade, com o colibri na mão; protegê-lo da força de minha carne, de esbarrar em burocratas distraídos, de eu mesmo me distrair e deixá-lo escapar para o céu, de onde ele veio... Doce colibri verde, delicado, como é difícil mantê-lo assim, intacto e estético!

Chego em casa. Solto-o para as flores (voltará para mim?) e ele e elas se complementam como as presenças que se encontraram para criar a realidade, lá desde começo dos tempos: são a bruta coisa palpável que se organiza em busca da beleza, que se forma elegante, que se cobre de deslumbrante plástica, e que depois se espiritualiza no vôo da separação, para renascer da treva em beleza maior...

O colibri (única ave, creio, que voa em cruz vertical), bebendo néctar é o próprio ícone do Cristo renascido, espalhador da primavera, penetrante e manso, quase imaterial...

(Deus, meu Deus; dai-me merecer existir! Perdoa-me por quando eu despeno este colibri, Teu filho mais afim a TI que eu, este pobre homem rapineiro e cheio de breu na alma... Não me desprezes, meu Pai, que é duro buscar-Te, sendo eu homem e mau!)

Leve, quase em mero aceno, aliso-lhe as penas luminosas, abro uma gaveta em meu coração e o guardo. Que ele vele por mim, suavize meus pesadelos. Que, amanhã logo cedo, ele ainda esteja lá, pois que a gaveta é sem fechadura. E se ele ainda estiver lá (aleluia!) eu me benzerei com o Santo-Sinal e eu o guardarei na concha da mão, e direi: é dia de novo!; vem, companheirinho, vamos passear pelo purgatório...



sexta-feira, 10 de março de 2017

CRÔNICA PEQUENINA EM VOZ DE REGRESSO

(Dedicada ao Luís Vilar, longo amigo)

Eita, lua velha para ver desgraça! Hoje eu estou de uma tristeza sem par... Amigo, longo amigo viajante, abre uma cerveja, acende um cigarro e me escute, que subitamente me bateu o bote de uma tremenda vontade de escrever! E não apenas de escrever: de voltar a escrever... E isso não é assim um rompante em esgrimas de pena à moda Dom Quixote; nada disso! É uma coisa do cronista que vê que, do céu ao esgoto, tudo está mudando numa velocidade de terremoto: os homens e mulheres se desfiguram gradualmente; a beleza tem lepra e é posta em marcha forte ao caminho da sepultura, e o tiquetaque das cidades virou uma cantilena de abjeções que valei-me Deus! Como calar? Como calar?!

Vi um sabiá pendurado no fio, entre postes altos como gritos e solenes como monges. Piava feio. Piava sem melodia. Mas piava sentindo. AINDA era um sabiá.

No carnaval recém-passado, vi um folião dançando doidamente – e dançava mesmo no intervalo das troças, quando não havia música; dançava para a orquestra que lhe soava na cuca... O mundo girava em torno dele e ele, naquele alheamento deslumbrado, dançava, dançava, dançava, fantasiado de “supererói”...

É preciso dançar, amigo velho, mesmo sem música; é preciso cantar, longo amigo da trajetória, mesmo sem voz, e é preciso escrever, amigo do Verbo, mesmo vivendo ao léu, no coração dos antitemas.