Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Brasil, o país do homicídio e do futebol

Neste último plantão me bateu uma vontade irresistível de comer um jabá. Mais precisamente, um jabá com coca-cola. O jabá, aqui em Pernambuco, é um prato delicioso de charque gordo (aqui se diz charque gorda; em Maceió, charque gordo, e confesso que não sei que gênero convém), cozido em feijão preto, acompanhado de arroz, farinha e vinagrete. Pensei: se o negócio estiver calmo, o jabá não me escapa! E porque estava tudo calmo, na hora do almoço fui à beira-canal matar a vontade.

Chega o garçom, ensebado de cozinha dos pés à cabeça.

– Um jabá executivo e uma coca-cola, por favor.
– Novo! (“novo” é uma espécie de “OK” pernambucal)

Sentei-me em frente a uma enorme TV, que passava os lances e gols da rodada. E foi um tal de gole por drible, garfada por assistência, suspiro por gol.

– A conta!
– Novo!

Entrei no carro com a testa suada, o bucho em vias de arrebentar o cinto e soltando soluços de alegria: bendito seja o Politicamente Incorreto, amém. Saí de lá sonhando com uma rede estendida em beira de praia, o vento sonso, aquele abraço uterino do tecido e o mole-mole gostoso de um cochilo...

Mas, mal pus os pés no Departamento:

– Delegado, homicídio...

Essas reticências na fala de quem noticia são uma crueldade! Homicídio... Pausa dramática, silêncio, suspensão: homicídio...

– Vamos (ic!) nessa...

Saímos pelo caminho, e o danado do jabá balançando na barriga, pressionando as costelas contra as curvas, quicando nos buracos, pesando no sinal fechado.

Chegamos. O PM alerta:

– Tá lá embaixo... Tem que descer uma trilha complicada...

Coço o cabelo por debaixo no boné e penso: agora deu a peste!

E lá vamos nós, pelo meio do mato, uma trilha estreita, o jabá me puxando para baixo e as minhas pernas bambas lutando contra a gravidade. Sufoco. Suadeira. Galho na cara. Escorrego. Passamos por um despacho velho de macumba e chegamos a um campinho de várzea aterrado por cima da mata e que tinha uma vista estonteante do litoral de Olinda.

A vítima estava sentada num barranco rente à lateral do campinho, colado ao jogo. Seria como o dono de um ingresso de primeira classe. O assassino chegou, deu-lhe um tiro na cabeça e outros pelo resto do corpo. E lá mesmo ficou o defunto, sentado, estático, civilizado torcedor de cabeça arrombada. Umas crianças vieram jogar bola e acharam o cadáver. Comunicaram aos adultos e seguiram jogando, lúdicos, sorridentes.

O morto era da mais perfeita imparcialidade. O mar estava azul, intensamente azul. A bola corria pelos pés daqueles meninos leves, verdadeiros colibris sem asas. A polícia chegou, revirou o corpo, o rabecão o ensacou, retirou-o de lá na maca e os meninos seguiram jogando, agora com mais espaço. A vista do local era realmente linda. O jabá pesava em cada movimento meu. Se a bola caísse naquela mata vertical, era bem capaz de perder-se – aí seria bronca...

* foto do local do crime.

http://pablodecarvalho1.blogspot.com.br/


sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O homicídio, sempre igual e sempre diferente

O investigador me avisa:

– Delegado, homicídio no Morro da Catita...
– Consumado?
– Consumado. Tiro de doze na cara.
– Vamos nessa.

Chovia, mas não, como na crônica anterior, aquela chuva esporádica. Era uma chuva convicta, de norte a sul e por cima de tudo.

Paramos a viatura ao pé do morro, junto a um grupo de gente desconfiada.

– Bom dia. Morro da Catita?
– Sei não. Moro aqui há pouco tempo. Sei não, vivo de casa pro trabalho, nem quase conheço ninguém por aqui. Pergunte ali na venda...

Mais adiante:

– Bom dia. Morro da Catita?
– O senhor vai aqui direito, passa a pontezinha, pega à esquerda, direita e depois esquerda de novo, acha o clube e segue até em cima...

Adiante, desembarcamos e lá estava uma ladeira enorme, coberta daquela lama covarde que faz o sujeito patinar de braços abertos feito uma espécie de equilibrista donzelo.

Uma senhora sai do quintal e fala:

– Doutor, quer um guarda-chuva emprestado?
– Quero sim, minha senhora; obrigado!

E lá vamos, as pernas abertas, fechadas, pé ante pé, passo aqui, passo acolá, uma camada de barro acumulando na sola, cai-não-cai, eita!, ôpa!, olha!, vixe!, segura!, agora foi quase!, e o povo achando graça: é bom ver umas autoridades passando aperto. Chegamos sem queda, amém.

Olho pela porta do barraco. A vítima está deitada feito uma jia, os punhos cerrados, com o rosto arrebentando, mas ainda rosto.

– Terá sido mesmo doze, pessoal?
– Acho que não. A doze teria virado a cara dele ao avesso. Tá mais pra soca-soca. Ou pode ser uma munição fuleragem...

Faz sentido. O tiro de doze traz em si uma abocanhada. Leva sempre, quando encostado, um naco bom de carne, que seus dentes de chumbo (lembrei-me de um samba sobre a solidão...) mastigam e do bolo deformado fica uma inumanidade: a falta do crânio, do rosto, do braço, do coração...

A imprensa chega. As pessoas começam a reclamar alto:

– Aqui falta água! Seu repóti, cadê a prefeitura? Se quiser dou intrevista!

As primeiras informações:

– Era viciado. Bebia muito. Gostava de mulher, e não deixava passar nada: aquelas mulheres noiadas, caça-rato, ele não perdoava nenhuma.
– Traficava?
–Não se sabe. Ontem à noite, antes um pouco do crime, estava bebendo na bodega de Nivaldo.

Sobe lameiro um pouquinho mais, bate-se à porta de seu Nivaldo.

– Como foi ontem? Teve confusão?
– Não sinhô. Ele tava com Quati bebendo, mas saiu antes de Quati; era um cliente calmo. Nunca fez confusão com ninguém.

Desce lameiro, bate-se à porta de Quati. Quati, alcóolatra evidente, está fumando e se tremendo todinho, e exala uma catinga de cachaça que chega a dar tontura. Puxando as lembranças da bebedeira, com aquele olhar vago de ressaca, ele retira uns painéis dessa confusão mental que é rebarba de pileque, e diz:

– Era um cabra bom, não era de confusão. Saiu antes de mim. Escutei o tiro, mas pensei que era só tiroteio.

A mulher de Quati, preta, miúda e conformada, acompanha a entrevista do oitão.

– Usava droga, traficava?
– Se fazia isso não sei, ne nunca vi. Só cana mesmo eu tomava com ele e de vez em quando...
– Ele tinha mulher, namorada?
– Quando bebia falava de uma tal Verônica, que mora acolá...

Puxou uma tragada com a mão trêmula, o braço feridendo de pinguço, e olhou para o horizonte.

– Obrigado.
– Por nada.
– Posso usar seu banheiro?
– Pode sim senhor.

Casa de favela parece que não abre nunca: tem aquele cheiro de acumulação, aquele bafo forte que mistura comida, poeira, mijo e tudo quanto é mobília e coisa usada.

Desce lama, escorrego, chega-se à casa de Verônica. Mas, no trajeto:

– Aqui falta água! A prefeitura abandonou nóis!

Apareceu uma nesga de sol. Subiu aquele calor pegajoso. A lama ficou ainda mais traiçoeira, e a juntar nas botas da gente com mais volume: ficamos meio como astronautas patéticos.

A casa de verônica tinha umas flores bonitas na entrada. É impossível vê-las e não cair em pieguice: uma flor brotou no monturo!

Um pouco acima, uma velhinha abriu as janelas de seu barraco e pôs-se a fumar em elegante placidez.

Sai Verônica. Gorda, tatuagem no braço, tranquila. Mãe de três filhos.

– Verônica?
– Sim.

Passa uma mulher e diz:

– Tô sabendo que você tá de bucho de novo!
– Tô não, minha filha. Tomei um comprimido e desceu tudinho!

Risos em comum, e prosseguimos:

– Você era namorada da vítima?
– Eu não. Ele vinha aqui, a gente bebia, ficava e depois ele subia pra lá pro barraco dele.

Olhei novamente para as flores.

– Você sabe como isso aconteceu?
– Eu...

A imprensa vinha descendo. Alguém nos interrompe;

– Pobre sempre se arromba! Cadê nossa água? Cadê a prefeitura?!

Verônica prossegue:

– Eu não sei não. Vieram me dizer, aí fui lá ver, fiquei incrível e voltei pra casa...
– Ele era viciado, traficava, tinha inimigos?
– Que eu saiba, não.
– Seu ex-marido tinha ciúmes?
– Tinha não. Até os dois se falavam, assim, passando, tá entendendo?
– Sei... Obrigado.

Saímos, conversando:

– Meu velho, essa investigação tá de rosca...
– Tem que aprofundar mais devagar, na delegacia...

Voltamos ao ponto de desembarque. Devolvi o guarda-chuva à gentil senhora. Nossos pés estavam cobertos de lama, pareciam tijolos sem fornada. Antes de entrar na viatura abri os jornais sobre o assoalho, para não emporcalhá-lo, sentei-me e plantei minhas botas nas manchetes do dia.

*fotografias do local dos fatos.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Duas mortes, uma morte.


Esses dias emendei dois plantões no Departamento de Homicídios. O primeiro foi à noite, no qual eu costurei outro que foi da manhã até a tarde do dia seguinte. E estava eu no primeiro plantão, naquele sono de chão de delegacia, que é nem dormir nem estar acordado, quando aparece a primeira ocorrência. Mochila nas costas, subo na viatura e a viatura sobe na favela. Desembarcamos. Em torno ao cadáver, uma multidão se espremia, com toda fauna humana possível nela: criança velho fofoqueira papudinho noiado traficante doido quenga bicha crente sapatão vigilante adolescente pastor candidato peladeiro emo nenê aleijado operário rapper cabelereiro aposentado estudante motorista cobrador albino gari rebelde sem causa etc. ao cubo. Pois bem. E lá estava o protagonista: menor de idade do sexo masculino envolvido com o tráfico alvejado por dez disparos de arma de fogo, efetuados por dois elementos em uma moto: modo clássico, produção industrial contemporânea, defuntos em série.

Começa a cair uma chuva, meio isolada, de uma nuvem sozinha em céu aberto. Faz um vento gostoso na favela.

De repente, a multidão cede espaço, as cabeças vão se afastando e abrindo vaga a uma romaria de apenas três mulheres: à esquerda, segurando um braço da mulher ao centro, a irmã da vítima; à direita, segurando o outro braço da mulher ao meio, a cunhada da vítima, e entre elas, paralisada da cintura para cima, vem a mãe da vítima. E quando ela, por detrás do cordão de isolamento, vê o filho morto, a imagem que entra por suas pupilas desperta de cabeça abaixo o corpo antes paralisado de pavor, e os berros desatam por dentro de tudo:

– Ai meu Deus; ai meu Deus, meu filho!... Meu filho, meu fiiilhooooooo!!! Levanta, meu filho; ai meu Deus que dor!

Ela invade o isolamento, mas é contida pela Polícia Militar.

O rabecão já sobe, e é um bicho de olhos em brasa que vem recolher a presa alheia – hiena de plástico e lata.

A chuva ainda cai, mas rareia.

Exausta, a mãe da vítima sentou em um tamborete e rumina consigo, um muxoxo quase imperceptível:

– Levanta, meu filho; ai meu Deus que dor!...

Os peritos retiram o lençol que cobria o cadáver e tateiam sua pele à procura de orifícios de entrada e saída, e seus bolsos à procura de documentos, drogas e outras coisas da mobília regular de cordeiros tais e sempre assim imolados.

Ao ver o corpo de seu menino sofrendo profanação, a mãe berra e parte para cima:

– Meu filho; meu filho! Soltem ele! Levanta, meu filho!!!

As mulheres a contêm, e é preciso três contra uma para reter a força que o desespero desdobra.

Num estertor, na última explosão de agonia, sofrendo a maior estocada de dor que o coração humano pode aguentar, quando a foz do martírio faz a mente perder-se no pesadelo da realidade, ela berra, antes de desmaiar:

– Está chovendo; tirem ele da chuva...

E desacorda e cai, flácida, pedindo para acordar em outra verdade.

Ouço risos na multidão. Olho para lá. No meio de uma algazarra danada, as pessoas tapam as ventas com a mão e exclamam:

– Peido do caralho!...
– Puta que pariu, peidaram!

Alguém confessa, às gargalhadas:

– Comi feijão estragado...

Para de chover. O IML ensaca o corpo. Fica o sangue descendo a ladeira. A mãe da vítima desperta.

– Meu filho; não levem meu filho! Ai meu Deus, que dor!

Volta a desmaiar. Alguém a leva para dentro da casa de alguém.

A imprensa já havia gravado os fatos que levaria para vender em sua prateleira de desgraças, na obrigação de noticiar e desculpar-se assim: o portador não merece pancada.

Deixamos a dor alheia por lá, em seus último suspiros, e retornamos ao Departamento.

***

Acordo às 5h30 da manhã. Será verdade, uma só ocorrência, a do cara que levou dez tiros? Que bom...

Com o corpo meio amassado, a boca pastosa, levanto, escovo os dentes, preencho a papelada, tomo um banho, uma tonelada de café, enfio o garfo em inhame, queijo coalho e ovos, e volto ao serviço.

Leio os jornais: Marina Silva dispara na corrida presidencial. O futebol anda mal. Nada novo no mundo das artes. Há o eterno desconforto dos homens com a vida urbana. Mataram um cão incendiado; exige-se justiça. O mundo está violento. Luta-se pelo direito de abortar. O telefone toca.

– Delegado Pablo?
– É ele.
– Ocorrência em Maranguape II. É um senhor de idade. Talvez morte natural.
– Ok. A caminho.

Volta essa chuva litorânea peganhenta, que surge sem aviso, fica pouco e chateia muito, feito visita de vizinho em dia de domingo.

A viatura alcança o setor com dificuldade, depois de rebolar em muita lama, e lá está o cadáver, debaixo de seu lençol, e eles sempre estão assim, cobertos e em falso sono, que a visão da morte é ao mesmo tempo deliciosa e insuportável aos olhos povo.

Num canto, a ex-mulher da vítima, muito mais jovem que o defunto, segurando um guarda-chuva enorme, desses de barraca em beira-mar, olha para ele e chora.

– A senhora é o quê do morto?
– Ex-mulher.
– Foi morte natural?
– Não. Eu estava em casa e escutei os tiros. Isso foi ontem à noite.
– E por que não avisou logo?
– Fiquei com medo de sair de casa. E aqui o sinal de celular é ruim.
– Ele era como?
– Um homem bom. Mas quando bebia ficava bravo e dava em cima da mulher dos outros.
– Mexia com drogas?
– Não senhor. Bebia muito e fumava. Era lanterneiro.
– E a senhora é separada, não é isso?
– Sou sim senhor.
– E separou-se por quê?
– Ele me batia muito.
– Alguma informação sobre esse crime?
– Alguém deixou flores na frente da minha casa durante a madrugada, deve ter sido quem matou ele. Ontem, ele estava bebendo no Bar da Gorda. Ah, ele tem tuberculose... Mas eu não sei quem fez isso.

Um policial avisa aos peritos e homens do rabecão:

– Pessoal, a vítima tem tuberculose!

Luvas, cautela e afastamento.

O defunto está deitado de bruços, em total rigidez cadavérica, e quando o perito muda sua posição ele fica imóvel e plano, duro e concreto de barriga para cima, como se contivesse uma pedra invisível (talvez o céu), como se todo o peso do presente real desta manhã que ele não vê mais tentasse esmagá-lo contra o chão, forçando o enterro desde já – esperar por quê?

Notas, fotos e registros findos, essa foi a última diligência deste dia chuvoso. Foi um plantão excepcionalmente calmo. Talvez a chuva...


(*Ilustrações: fotos batidas pelo autor em seu celular, nos reais locais dos fatos que acima viraram crônica)
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