Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 30 de março de 2012

História de uma canção em parceria: Punhal (estilo: cotidiano).



Chico Elpídio me disse que tinha composto um blues de enorme tristeza; uma música dessas de passar a ferro o coração da gente. Disse que estava finalizando uns detalhes de harmonia, melodia, acordes e essas coisas todas pelas quais os músicos são vidrados, e só depois a enviaria. Tá bom, eu falei, vou aguardar.

Nessa época a vida andava mais dura que o habitual: muito serviço, pressão de estourar a cervical, e, pra temperar tudo de tristeza, algumas pessoas me haviam preparado grandes “camas de gato”, umas punhaladas que não haviam me matado, mas doíam pra caramba.

Eu já vou com onze anos de polícia, trinta e três de idade (hoje é dia 30 de março de 2012), muito tempo no oco do mundo, e já deveria estar mais habituado à malícia dos homens, mas toda vez que vejo uma injustiça, o negócio machuca, sabe? É uma tremenda ingenuidade que nunca me abandona – oxalá nunca o faça! Uma espécie de loucura, uma surpresa diante do que já está previsto... sei lá!

Bem, mas, voltando ao lance da canção, eu ia nessa de sofrer quando, numa quinta-feira, recebo um email do Chico com a música: um arquivo MP3 com ele solfejando a melodia e tocando violão pra se acompanhar. Mas eu andava atarantado, com serviço até a cintura, e nem pude escutar nada naquele dia.

No dia seguinte (a sagrada sexta-feira), assim que cheguei ao trabalho, abri o arquivo e escutei um trecho. Parei. Meu coração também parou – o negócio era pesado mesmo, era grandão à vera! Voltei ao serviço, fugindo desavergonhadamente da música. No horário de almoço, abri o arquivo e recomecei a escutar aquela balada triste. Todo aquele sentimento, aquela fundura, tudo o que estava me atormentando subiu até a garganta, quis entrar pela cabeça, escapar pelos olhos. Escrevi as primeiras linhas da letra: “É meu mal, confiar demais e ter amor/um erro tal, por que já pagou Nosso Senhor...” Parei de novo. Rabisquei mais alguma coisa, não lembro exatamente mais quantos versos, mas diante de uma baita vontade de chorar (que pegaria extremamente mal em pleno Departamento de Homicídios), fechei o serviço e voltei ao trabalho.

Assim que cheguei em casa (mulher e filha estavam fora) abracei uma garrafa de bebida, peguei um maço de cigarrilhas e desatei a escrever, entre lágrimas e soluços, coisas como “sem porquê, tua mão tira o que a outra deu/e quer mais, quer levar, quer espalhar a dor!...”. Foi uma dessas ocasiões em que a letra vem já toda, em cascata, e que, pra canção ficar completa, fica só faltando o músico ver se cada palavra é justa e cantável.

Mostrei a Luciana (minha mulher, cantora de ouvido afiadíssimo), que aprovou – ela, aliás, participa de quase todas essas parcerias indiretamente, sabatina geral, passa a limpo (dá carão e tudo!), mas nunca aceita assiná-las; diz que fez pouco: bendita seja a grandeza feminina!

Garrafa vazia, alma lavada, mandei a letra pro Chico – por email também, que ele vive em Maceió e eu em (ou: no) Recife. Fiquei numa tremenda ansiedade pela opinião dele, já que aquilo havia me custado tanta lamentação. Só no domingo o infeliz (que passou o sábado batendo bola e tomando cerveja) verificou a letra, e me respondeu com um torpedo assim garrafal: “VÁ TOMAR NO C...”.

Parceria é mesmo um casamento sem sexo, como disse o sublime Vinícius de Moraes. No caso em questão, mandar tomar naquele canto significa que ele adorou o resultado – só convivendo pra conhecer, né?...

Essa canção acabou virando um samba dolente (mudança que vale outra crônica, pra depois), e está num clipe eu que eu mesmo fiz, e que o Chico gostou muito, pois me mandou, de novo... enfim.

Bem, aí está:

http://www.youtube.com/watch?v=S-CBhOAPRaU&feature=g-upl&context=G27f618aAUAAAAAAACAA







sábado, 24 de março de 2012

O Olhar Caindo (Estilo: cotidiano)



Você lembra? Não?! Nem poderia. Foi um instante mais ligeiro! Mas me deixa contar:

Aconteceu num exato momento da manhã, de uma manhã azul e branca. Você estava noturnamente vestida, ou melhor: vestida para o trabalho, que em minha noção de escravo dos dias a noite começa quando a gente começa a trabalhar.

Aí, atenta que você andava na vida, concentrada no ofício de existir, você inclinou o rosto suavemente, apontando pelo olhar uma direção indecisa que, de cara, parecia buscar o chão, mas, afinando o coração, pude ver que dava para o infinito, para o tempo doce, para o país silencioso e profundo das mulheres.

Assim foi, bonita mulher, numa pausa suspensa por um segundo (se muito), que eu gravei na alma, cimentada em poesia muda de tão sincera, essa ponte que você abriu para a solidão de uma dimensão de estrelas, de lamento deslumbrante, feito objeto suspenso.

Sabe que (que esforço faço; quase a escrita gagueja!) seus cabelos, sei lá; eram umas coisas, umas cortinas para a beleza... Caíam, doces, puríssimos, mas afetados por um sofrimento oculto, que brilhou no exato momento de os olhos (planetas azuis) adernarem, de os olhos apontarem para a contemplação... Ah, eu amei você tanto mais assim que a vi contida; tanto mais me fiz humilde cientista da iluminação que vazava do que você via por dentro!…

Quis (tolo e precipitado) beijar sua boca, quis ver se seria possível entender, no espelho de suas pupilas, que miragem encantada lhe pintava de tanto mar em mistério...

Mas calei, contido, fechado como fruto depois de flor. Sorri: bateu uma baita vontade viver para sempre, de trabalhar feito estivador, de dar a volta ao mundo a pé!... Fechei os olhos e fixei no peito aquela visão feminina que, pra mim, foi a coisa mais semelhante à palavra vida que jamais vi.

Vê? Lembra? Não ainda? Então deixa quieto... Mas você pode continuar sendo assim, para sempre? Pode! Vai deixar eu espionar? Não sorria que o negócio é sério! Vai ou não vai? Vai! Então serei feliz.

sexta-feira, 16 de março de 2012

O Politicamente Incorreto (Estilo: cotidiano)



Diz como é que um homem faz pra relaxar! Um homem apegado à vida e ao movimento dos acontecimentos; um homem que se importa… Ele não relaxa. Vai à rede, abre o livro, pega o café, acende o cigarro, mas tudo lhe baratina a cuca, tudo lhe mete pela cabeça dentro os lamentos, as ponderações e, no rastro, a perspectiva iminente da morte. É a cidade íntima que traz em si, onde se movimentam a mulher, o trabalho, a moral e a imoralidade; as ideias de amanhã ser melhor – de amor e amizade. Seria aparentemente simples: deixa essa merda se danar e aproveita o tempo! Mas, ah, não é bem assim: o cérebro, automático, faz do autômato alguém que já só pertence às ondas de fatos rebatidas nos olhos, no coração, pelas veias todas e na pele, como a pintar sua carne de notícias e opiniões.

Digam o que quiserem do politicamente incorreto, mas existe uma raça de homens que só encontra redenção na bebida. Não falo dos alcoólatras agudos, porque se consomem numa guerra que eu não conheço; falo daqueles que, feito eu, precisam visitar o sublime de quando em vez, esse céu abstrato que se reconhece na bebida; que lhe abre o amor detrás da cortina do cotidiano. E a casa disso é a sexta-feira, com sua sagrada acumulação de labuta e o sublime acontecimento de seu entardecer. E o nome disso é pileque – porre é muito agressivo; embriaguês, muito técnico; pileque é doce; o demais é gíria e mau gosto, nem vale a pena citar.

Sabe bem quem o sente: chegar às sextas, sentar num canto, ouvir música e tomar uma bebida! Tudo lhe amolece, depois comove, e os acordes vêm em tom de abraço curtir a alma daquele que, embora esteja sempre sonhando, é agora o próprio sonho em movimento ascendente.

E se lhe disserem (dedo na cara), nesse momento, que ele está iludido, que vai assim bambo por conta de uma química que lhe cala uma fraqueza da infância remota num tabu fálico em forma de garrafa etc. e blá-blá-blá, ele rirá, operário encantado em seu ritual de ternura e bendizer, e afagará os cabelos dos críticos, e será doce seu olhar respondendo: relaxa…


quinta-feira, 8 de março de 2012

Interrogatório: ela é doente ou mentirosa? (Crônica policial. Estilo: fuleragem)

Escrita no ano de 2006.

Numa delegacia do interior o policial entreabre a porta do gabinete:

- Doutor...
- Pois não...
- A testemunha está aí...
- A do caso do estupro seguido de morte, lá da chã?
- Sim senhor...
- Ainda bem que veio. Já ia mandar conduzir essa pilantra. Tô achando que ela tem interesse no negócio. Porra, velho, já intimei ela duas vezes, liguei, mandei um policial lá e nada dela aparecer!
- Parece que ela tem um problema de saúde, doutor...
- Que problema? Cadê o atestado? Eu perguntei a ela quando liguei; ela só disse que era doente, mas não disse a doença, se recusou; assim dificulta...
- Pode ser uma doença íntima, doutor: pinga-pus, hemorroidas, caganeira, xanha, corrimentos...
- De qualquer modo ele tinha que dizer; o negócio é sério, porra; é caso de estupro!

Lá fora, a indigitada testemunha aguardava. Tinha um terço nas mãos, o rosto enfiado no chão. Parecia muito aflita. Um policial passou, olhou-a de viés, meio puto, e seguiu. A escrivã também passou, e, vendo-a naquele estado de ansiedade, apiedou-se da coitada – como se mulher fosse classe unida...

Ajoelhou-se frente a ela e indagou:

- Que foi que houve? Algum problema?
- Não.
- Você é a testemunha do estupro, né?
- Sou sim.
- E por que você não veio antes, minha filha?!...
- É que eu sou doente.
- De quê? Diga pra mim, que também sou mulher...
- Eu não queria falar disso...
- Então tá bom. Mas o delegado já tá pensando que você tem interesse em que o caso não seja resolvido... Acha que você conhece o estuprador ou alguma coisa assim...
- Deus me livre, eu juro que não! Eu só tava passando e vi a cena; me escondi no mato para não ser vista, depois saí correndo. Veja, se fui eu quem disse do caso à polícia, por que teria interesse?
- Pois é... Mas não está parecendo...

Durante esse diálogo, principalmente na parte em que a testemunha se defendia, a escrivã poderia jurar ter ouvido pequenos barulhos, muito estranhos, como roncos, fala de porco, ou algo parecido...

Bem, mas o fato é que na sala do delegado tudo estava pronto: a escrivã encerrara a conversa e já estava em seu posto; num canto, um policial assistia a tudo.

- Escrivã, mande entrar a testemunha.
- Sim senhor.

A pobre-coitada entrou. Sentou-se, muda, cabisbaixa, e esperou. Depois de preenchida a identificação, registrados os compromissos legais etc., o delegado mandou brasa:

- Minha filha, nós vamos bater um papo, informalmente, e só depois eu vou mandar o escrivão digitar, entendeu?
- Sim senhor.
- Bom. Primeiro, eu quero saber por que cargas d’água você não veio antes, quando eu lhe intimei duas vezes, liguei, mandei um policial e tudo?
- É que eu tive medo porque tenho um problema de saúde; só isso doutor.
- E que raio de problema é esse?
- Eu prefiro não comentar. Agora já estou aqui.
-Tudo bem. Vamos lá. Mas fique sabendo que você não me convenceu com esse papo de doença que não existe...
- Existe doutor, eu juro, só não posso dizer...
- Então pra mim não existe. Eu já começo esse negócio desconfiando de você.
- Não doutor, eu juro!...
- Pode jurar mil vezes: sem atestado nem nada sua jura não vale um tostão. Você se escondeu, saiu de banda, e ponto.
- Mas...
- Nem “mas” nem meio “mas”! Vamos ao que interessa. O que você fazia no local do crime?
- Eu estava indo para casa...
- Pelo mato?...
- É um caminho mais curto; é que eu tinha pressa.
- Por quê?
- A janta tava atrasada.
- Mas eram só quatro e meia da tarde!
- Sendo que é tempo seco, doutor. A macaxeira é dura; demora pelo menos hora e meia pra cozinhar direito...
- Certo, vou fazer de conta que acredito.
- Mas é verdade...
- Ok... E então, o que aconteceu?
- Foi assim: eu ouvi um gemido perto da plantação de macaxeira. Então fui ver ser era uma criança ou alguém passando mal...
- Ummm... Quer dizer que o gemido de uma criança é igual ao de alguém passando mal...
- Não sei...
- Eu também não. Prossiga.
- Bom. Então eu cheguei perto e vi aquele homem montado na mulher...
- E o que você fez?
- Eu fiquei com tanto medo que me acocorei e esperei ele ir embora...
- E por que não voltou por onde veio?
- Eu não sei, tive medo...
- Historinha mal contada, ein...
- Mas foi assim doutor.
- Prossiga.
- Então eu ouvi o barulho de tiro...
- Mas ela levou três tiros...
- Eu só lembro de um...
- Ummm... E?
- E então e ouvi os passos dele saindo e vim correndo pra delegacia.
- E como era esse homem?
- Não vi, doutor.
- Como não? Você acabou de me dizer que viu o salafrário em cima da menina!...
- Sim, mas de costas, e só dava pra ver a... a bunda dele...

O policial quase riu. Prosseguiu o delegado:

- E como era a referida bunda?...

Desta vez o policial não resistiu e soltou uma leve risada. A escrivã indignou-se, mas se manteve calada.

- Ela ira igual às outras...
- E por acaso você conhece as bundas de todo mundo pra dizer que elas são todas iguais?...
- Não doutor...

Mais uma vez o policial sussurrou, travou só meio riso, e a escrivã franziu a testa.

O delegado, solene, disse:

- Tudo bem, esqueça...

A testemunha se angustiava cada vez mais. Sentia-se ridicularizada, claro, mas nem ligava tanto; temia mesmo ser indiciada, presa etc. O pequeno terço sofria, torturado entre seus dedos, e ela começava a transpirar. Em meio àquilo, a escrivã mais uma vez jurou ter ouvido aqueles barulhos esquisitos. Estranhava que o delegado e o policial não ouvissem também, embora fossem discretos – os barulhos, não os dois machistas. E o depoimento prosseguia, sempre com a mesma perseguição, desconfianças, perguntas dúbias e cheias de segundas intenções. Os barulhos ainda rugiam, ia e viam, seguiam a tensão dos diálogos – pelo menos aos ouvidos da escrivã. Por que não os ouviam os outros dois? Talvez estivessem demais atentos em cercar a testemunha, em lhe arrancar uma verdade que presumiam. O fato é que a testemunha se sentia acurralada; sentia sua palavra sem crédito nenhum, embora estivesse sendo absolutamente sincera. Começava a se perder, a entrar numa de incompreensão, chegando a duvidar de si mesma, a alterar sua autoimagem, a se ver como a descrevia o delegado: mentirosa, pilantra, desavergonhada, bandida! Num dado momento pensou que tudo estava acabado: estivera no lugar errado e na hora errada; sua memória era fraca, falava besteira demais, enfim: estava frita. Desesperou-se. Era doente, verdade pura, por que ninguém acreditava? Que droga! Mas não podia revelar... Sendo que se dissesse a verdade talvez se salvasse... Será? Nunca! Não podia confessar! Aquela negação estava enfiada em sua cabeça, enraizada desde a infância; mesmo que quisesse, não conseguiria. Enfim, ia ser presa, humilhada, ia sofrer e seria o fim: prego batido e ponta virada!

- Então, minha filha, você disse que não conhecia o estuprador, mas antes disso disse que não tinha visto o safado; que negócio estranho é esse? Ou bem você não viu o cara, ou bem não conhece o cara. Olha, você está em maus lençóis!

A escrivã estava ofendia com todo aquele massacre; ora bolas, era uma mulher também! Para que tanta humilhação? Já nem ligava mais para aqueles barulhos, até que veio um alto, muito alto, tão alto que chamou também a atenção e delegado e do policial, que pararam as atividades, suspensos.

- Que zoada é essa?
- Que djjjjabo é isso, homi?

A testemunha permanecia com a cabeça voltada para o terço nos joelhos.

- Que barulho da porra foi esse?... Eu ein... Mas, como eu dizia, a senhora provavelmente já ficará aqui presa, porque não quer me contar a verdade...

Aí a testemunha ergueu os olhos e fitou o delegado. Entreolharam-se. Outro barulho soou, discreto, mas indisfarçável.

- Mas doutor, eu sou doente, sou inocente, já disse!...
- Doente uma ova! Você é perfeitamente saudável; sua doença é a mentira!

Outro barulhinho veio, bem no meio do protesto da coitada, que berrava:

- Mentira droga nenhuma! Mentira é o c...!

O delegado surpreendeu-se com aquela ousadia. A mulher desembestou. Outro barulho estrondou, alto como aquele.

A testemunha desesperou-se e começou a se debater. Partiu para o ataque, feito bicho acuado:

- Sou doente, doente, por que ninguém acredita?!

Aí os barulhos estouraram de vez, altíssimos e agora nítidos: eram enormes peidos, constantes, incontáveis.

- Estão vendo?, sou doente! Não posso falar demais, muito menos pensar muito e nem sequer chegar perto de me aperrear; sou doente!

Para agravar a situação, a testemunha pôs-se também a urinar nas calças. Levantou-se, envergonhada, para sair da sala. Todos estavam estupefatos, verdadeiras estátuas.

- Estão vendo, eu não menti, nunca menti nessa disgrama! E agora vou-me embora!

E partiu a sonora criatura, as pernas apertadas, pingando urina e liberando longos e intermináveis peidos pela delegacia fora, feito uma lambreta vazando óleo.

Silêncio geral. Reflexão. Tempo. Ao cair em si, o delegado perguntou:

- Que raio de doença é essa?

Ao que o policial respondeu:

- Não sei doutor, mas que é doença, é...
- Dos nervos?
- Pode ser, mas ataca outras partes...
- Que coisa... Será que foi por isso que ela não ouviu os outros dois tiros? Sorte dela essas bufas não terem denunciado sua posição pro bandido...

O policial quis rir, mas olhou para a escrivã e se conteve.

E a escrivã, com um baita tom repreensivo na voz, indagou:

- E então, como fica o depoimento, senhores investigadores?

Afiando ainda mais o tom, ela emendou:

- Aliás, sendo essa mulher a única (pronunciou "única" rangendo os dentes) testemunha, como fica o caso?

Ao que respondeu o delegado, pensativo, distante, ainda sob o efeito do fato:

- Autoria desconhecida, senhora escrivã, tudo indica: autoria desconhecida...

quinta-feira, 1 de março de 2012

O vereador que orava... (Crônica Policial. Estilo: fuleragem)


O VEREADOR QUE ORAVA...                                                               
Ou: um caso difícil de engolir
(escrita no ano de 2006)



Como sempre: baseado em fatos reais, que chegaram a este escritor pela tradição oral (ou seja: o boca a boca), como em tempos atrás...

I

Essa é pura fuleragem. Essa é de estourar a boca do balão (é o novo!). Essa não pode fica à boca-miúda. Nada de cala-te-boca. Vou botar boca no trombone. Essa, enfim, é boca-quente! 

Essa se deu naquela cidadezinha do interior... Aquela mesmo, pequenina, emancipada há nem tanto tempo, incrustada lá pelas quase bandas do sertão - quase. 

Sexta-feira. Câmara de vereadores. Sessão plenária plena. Três ou quatro desocupados e/ou puxa-sacos assistindo. Na tribuna, aquele, o símbolo, o mais antigo vereador do local, oito mandatos nas costas, bigode enorme, casado, respeitadíssimo, microfone apertado nos cinco dedos, boca toda aberta, a esbravejar:

 Eu, senhores nobres vereadores a esta casa presentes, João Horácio, com tantos e tantos anos de doação geral, estes incontáveis anos em que venho empunhando a bandeira, a causa do humilde homem do campo...

E prosseguia, apertando o microfone, quase o engolindo, sacudindo a cabeça como uma enorme lagartixa, ou melhor, um cururu tetei que imitasse uma:

- ...Por isso digo: sou contra o uso de capacetes nesta cidadezinha!... Ora essa, nossos matutos não precisam esconder a cabeça quando vão apenas até ali, num roçado, cavar um rego, plantar macaxeira ou limpar uma cova!... É preciso interpretar a lei com cuidado, muito cuidado...

O povo que àquilo assistia quase cochilava, afora uns meninos que perturbavam das janelas, depois corriam pela praça. 

João Horácio, impávido, prosseguia:

- Eu sei, eu sei, muitos queriam fazer o que eu faço, mas não têm coragem! Mas eu não tenho medo da rebordosa! Minha língua, senhores, não tem papas! Minha boca, ainda que não agrade a alguns, está aqui a serviço de quem me botou nesta posição!...

Já quase oito horas da noite. Todos os outros parlamentares desejavam partir, não aguentavam mais aquele discurso que sempre se repetia, e suas mãos já coçavam de vontade de aplaudir. Mas o orador estava empolgado:

- Aqui estou, já com certa idade nas costas, mas o que me empurra, o que me leva para frente é este enorme desejo, esta abnegação com a qual abraço o sofrido estandarte do homem que bate estacas, do homem que cava o barro, do homem que monta, que galopa, que quase perde o fôlego mas que, no fim de tudo, pode sentar-se e extravasar num suspiro tudo aquilo que traz dentro de si...

Quase em lágrimas, arrematou:

- Enfim, senhores, agradeço a este povo, de quem tanto tenho recebido, e por quem tanto tenho me empenhado em dar de volta; se não o faço o suficiente, é que a idade já não permite, é que as costas se encurvam, é que os joelhos se envergam, é que a garganta engasga. Este é o centro, o cume da questão... Muito obrigado, tenho dito.

Todos aplaudiram; não ao orador, mas à vida, que lhes abria aquela folga de presente. Partiram. Uns foram para para casa, outros foram dar aquela raparigada semanal, e outros, a exemplo do nosso orador, foram refrescar a garganta com umas doses e uísque numa churrascaria logo em frente.

Nada demais até agora. Tudo legal. Tudo como em tudo o que é lugar. E o leitor já deve estar se perguntado: que crônica policial da porra é essa? Ao que responderei: sim, tenham calma, a crônica é policial, e da porra. Vejamos...

II

Naquela mesma sexta-feira, lá por altas horas, uma equipe da Polícia Militar fazia rondas de rotina pela cidadezinha, e conversavam.

- Ei, depois de passar pela rodovia, vamo dar o cata né?
- Vamo sim. Mas tá pingando quase nada. O cabra do passaporte ta farrapando, e dona Idalina do cabaré abaixou a parada pra quinze conto!... É foda mesmo...
- Polícia é assim, perto incomoda e longe faz falta.
- E o que é que isso tem a ver com história?... Ôxe, é um doido é?!

Riram-se os outros...

- Tem sim, seus feladaputa... Eu quis dizer que quando eles precisa da gente a gente chega junto... E pode seguir em frente, caminha-no-reto!...
- Aí dentro!

E assim seguiram, modulando no rádio, tarando as menores de peitinhos de pitomba (é o novo de novo!) e fazendo gozações. Mas, ao passar por um posto de gasolina, depararam com algo suspeito. Uma caminhonete prata, vidros fechados e embaçados, motor ligado, estava estacionada bem próximo. Estranho. Estranhíssimo. Aquele tipo de veículo é comumente usado em assaltos. E daquele jeito, fechado, ligado... Muito provavelmente eram bandidos esperando para dar o bote no referido estabelecimento. 

Os policiais agiram rapidamente, abriram a porta em posição de salvaguarda e... Lá estava o veterano vereador João Horácio dando uma gulosa chupada no cacete obsceno de um negão daqueles ao estilo “tranca-rua”, no estilo da cançãozinha de natal: "quero ver você não chorar, não olhar pra trás nem se arrepender do que faz!". Ninguém entendeu nada. Que era aquilo? Seria mesmo o ilustre vereador? Por um instante, estarrecidos, pensavam que era uma visagem, ou que aquilo era outra coisa, a marcha, o freio de mão, o extintor de incêndio, ou sabe-se lá o quê... Mas a neblina de pensamentos passou rapidamente. Era um cacete, no sentido mais aproximado da literalidade. E este cacete estava mesmo naquela boca que há pouco discursava. Aninhado naquele respeitável bigode, quase se via uma vassoura de piaçava. 

Ouviu-se um barulho de sucção, de dentro pra fora, como um estalo. Um dos PMs, coçando o quepe, disse baixinho...

- Má rapaiz, eu nem me liguei que era a caminhonete do vereador, óia?!

O policial que comandava a equipe, depois recuperar o senso, disse:

- Mas vereador, ato obsceno em vias pública!

João Horácio, ainda de garganta entalada, aprumou-se e reagiu:

- Mmmm... me regspeite... Cof-cof-cof... Hummmmrrrrumm... Umum Digo: me respeite que eu sou uma autoridade!

Aí o negão tomou parte:

- Tá vendo vereador, você com essa mão de vaca! Eu disse que era melhor ir para um motel!... Puta merda...

Mas policial meteu o cala-boca:

- Vamo acabar com isso. Todo mundo pra delegacia!...

Na delegacia a situação, já de si delicadíssima, piorou. O tal negão injuriou-se. Estava num canto, amuado, querendo falar e sem coragem... Mas de repente, engoliu ar e emplacou:

- Não quero nem saber de nada. Eu quero é os cinqüenta real que o senhor me prometeu...

Ao que o vereador disse:

- Nada disso, o serviço foi incompleto...

E o policial interveio:

- Incompleto por quê? Tinha que comer o cu também?

E o negão respondeu:

- Não. Eu tinha que gozar na boca dele.

O vereador, constrangido, fez um que-sim. Aí o negão não perdeu tempo:

- Então o senhor me dá pelo menos trinta conto... Ó seu policial, já é a terceira vez que a gente faz isso. Eu não sou viado não, só faço pelo dinheiro, por necessidade.

O policial civil de plantão, estarrecido com aquilo tudo, olhou para a cara amuada do vereador. Observou que o mesmo tinha uma gosma amarelada no bigode, que não sabia nem tampouco desejava saber o que era. Mandou que o parlamentar limpasse o imponente bigodão – a escova de pica, no vulgo policial. Por fim o delegado, atônito diante de tanta fuleragem, arrematou:

- Pessoal, dívidas devem ser cobrados no Juizado de Pequenas Causas. Negão, tabele a chupada, junte nota de serviço e se vire... Agora todo mundo fora que eu já estou me sentindo enjoado, com espuma na boca...

Aí o negão resolveu exercer a cidadania:

- Nada disso doutor. Só saio daqui com os cinqüenta conto... Home é home!... Se o senhor quiser eu dou testemunha de tudo, não quero nem saber...

E o delegado:

- Negão, é o seguinte: já mandei você abrir no mundo; ou você vai ou fica no xadrez...
- Sendo assim eu vou, mas só saio da frente da casa dele quando ele me pagar!
- Eu já disse que não devo nada...
- Se nóis não tivesse perdido o crima, eu terminava o serviço agora mesmo... A culpa não foi minha...

E o delegado, já quase arrancando os cabelos, esbravejou:

- Hômi, pelo amor de Deus! Se você quiser fazer sentinela na casa do outro faça, mas saiam daqui que eu tô em tempo de vomitar!

E lá se foram todos. O negão realmente fez sentinela, só que na esquina do vereador, e de lá só saiu quando fechou a parada nos quarenta reais, ficando a dever um boquete promocional por trinta e cinco, quando a poeira sentasse.

III

Naturalmente que esse boato se espalhou. Os membros da câmara municipal ficaram apavorados, perderam o sono – como diz o povão: quem tem cu tem medo... Uns até andavam pelas ruas cuspindo pelos cantos, querendo mostrar ao povo sua repugna ao ato. Quase diziam, depois da cuspida:

- Estão vendo aqui no chão?! Venham ver que evapora, evapora, esta disgrama evapora!... 

No dia seguinte foi um corre-corre de vereadores às rádios locais para meterem a boca no trombone e esclarecer que não foram eles que meteram a boca na botija. Diziam todos, em resumo: vereador ora? Ora! Mas eu não orei. Se oraram, oraram, mas quem ora que responda pelo que orou, pois há oratórias e oratórias, e uma infâmia dessas, esbravejavam, não se engole a seco, ora-ora-ora!

TENHO DITO.