Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

quinta-feira, 1 de março de 2012

O vereador que orava... (Crônica Policial. Estilo: fuleragem)


O VEREADOR QUE ORAVA...                                                               
Ou: um caso difícil de engolir
(escrita no ano de 2006)



Como sempre: baseado em fatos reais, que chegaram a este escritor pela tradição oral (ou seja: o boca a boca), como em tempos atrás...

I

Essa é pura fuleragem. Essa é de estourar a boca do balão (é o novo!). Essa não pode fica à boca-miúda. Nada de cala-te-boca. Vou botar boca no trombone. Essa, enfim, é boca-quente! 

Essa se deu naquela cidadezinha do interior... Aquela mesmo, pequenina, emancipada há nem tanto tempo, incrustada lá pelas quase bandas do sertão - quase. 

Sexta-feira. Câmara de vereadores. Sessão plenária plena. Três ou quatro desocupados e/ou puxa-sacos assistindo. Na tribuna, aquele, o símbolo, o mais antigo vereador do local, oito mandatos nas costas, bigode enorme, casado, respeitadíssimo, microfone apertado nos cinco dedos, boca toda aberta, a esbravejar:

 Eu, senhores nobres vereadores a esta casa presentes, João Horácio, com tantos e tantos anos de doação geral, estes incontáveis anos em que venho empunhando a bandeira, a causa do humilde homem do campo...

E prosseguia, apertando o microfone, quase o engolindo, sacudindo a cabeça como uma enorme lagartixa, ou melhor, um cururu tetei que imitasse uma:

- ...Por isso digo: sou contra o uso de capacetes nesta cidadezinha!... Ora essa, nossos matutos não precisam esconder a cabeça quando vão apenas até ali, num roçado, cavar um rego, plantar macaxeira ou limpar uma cova!... É preciso interpretar a lei com cuidado, muito cuidado...

O povo que àquilo assistia quase cochilava, afora uns meninos que perturbavam das janelas, depois corriam pela praça. 

João Horácio, impávido, prosseguia:

- Eu sei, eu sei, muitos queriam fazer o que eu faço, mas não têm coragem! Mas eu não tenho medo da rebordosa! Minha língua, senhores, não tem papas! Minha boca, ainda que não agrade a alguns, está aqui a serviço de quem me botou nesta posição!...

Já quase oito horas da noite. Todos os outros parlamentares desejavam partir, não aguentavam mais aquele discurso que sempre se repetia, e suas mãos já coçavam de vontade de aplaudir. Mas o orador estava empolgado:

- Aqui estou, já com certa idade nas costas, mas o que me empurra, o que me leva para frente é este enorme desejo, esta abnegação com a qual abraço o sofrido estandarte do homem que bate estacas, do homem que cava o barro, do homem que monta, que galopa, que quase perde o fôlego mas que, no fim de tudo, pode sentar-se e extravasar num suspiro tudo aquilo que traz dentro de si...

Quase em lágrimas, arrematou:

- Enfim, senhores, agradeço a este povo, de quem tanto tenho recebido, e por quem tanto tenho me empenhado em dar de volta; se não o faço o suficiente, é que a idade já não permite, é que as costas se encurvam, é que os joelhos se envergam, é que a garganta engasga. Este é o centro, o cume da questão... Muito obrigado, tenho dito.

Todos aplaudiram; não ao orador, mas à vida, que lhes abria aquela folga de presente. Partiram. Uns foram para para casa, outros foram dar aquela raparigada semanal, e outros, a exemplo do nosso orador, foram refrescar a garganta com umas doses e uísque numa churrascaria logo em frente.

Nada demais até agora. Tudo legal. Tudo como em tudo o que é lugar. E o leitor já deve estar se perguntado: que crônica policial da porra é essa? Ao que responderei: sim, tenham calma, a crônica é policial, e da porra. Vejamos...

II

Naquela mesma sexta-feira, lá por altas horas, uma equipe da Polícia Militar fazia rondas de rotina pela cidadezinha, e conversavam.

- Ei, depois de passar pela rodovia, vamo dar o cata né?
- Vamo sim. Mas tá pingando quase nada. O cabra do passaporte ta farrapando, e dona Idalina do cabaré abaixou a parada pra quinze conto!... É foda mesmo...
- Polícia é assim, perto incomoda e longe faz falta.
- E o que é que isso tem a ver com história?... Ôxe, é um doido é?!

Riram-se os outros...

- Tem sim, seus feladaputa... Eu quis dizer que quando eles precisa da gente a gente chega junto... E pode seguir em frente, caminha-no-reto!...
- Aí dentro!

E assim seguiram, modulando no rádio, tarando as menores de peitinhos de pitomba (é o novo de novo!) e fazendo gozações. Mas, ao passar por um posto de gasolina, depararam com algo suspeito. Uma caminhonete prata, vidros fechados e embaçados, motor ligado, estava estacionada bem próximo. Estranho. Estranhíssimo. Aquele tipo de veículo é comumente usado em assaltos. E daquele jeito, fechado, ligado... Muito provavelmente eram bandidos esperando para dar o bote no referido estabelecimento. 

Os policiais agiram rapidamente, abriram a porta em posição de salvaguarda e... Lá estava o veterano vereador João Horácio dando uma gulosa chupada no cacete obsceno de um negão daqueles ao estilo “tranca-rua”, no estilo da cançãozinha de natal: "quero ver você não chorar, não olhar pra trás nem se arrepender do que faz!". Ninguém entendeu nada. Que era aquilo? Seria mesmo o ilustre vereador? Por um instante, estarrecidos, pensavam que era uma visagem, ou que aquilo era outra coisa, a marcha, o freio de mão, o extintor de incêndio, ou sabe-se lá o quê... Mas a neblina de pensamentos passou rapidamente. Era um cacete, no sentido mais aproximado da literalidade. E este cacete estava mesmo naquela boca que há pouco discursava. Aninhado naquele respeitável bigode, quase se via uma vassoura de piaçava. 

Ouviu-se um barulho de sucção, de dentro pra fora, como um estalo. Um dos PMs, coçando o quepe, disse baixinho...

- Má rapaiz, eu nem me liguei que era a caminhonete do vereador, óia?!

O policial que comandava a equipe, depois recuperar o senso, disse:

- Mas vereador, ato obsceno em vias pública!

João Horácio, ainda de garganta entalada, aprumou-se e reagiu:

- Mmmm... me regspeite... Cof-cof-cof... Hummmmrrrrumm... Umum Digo: me respeite que eu sou uma autoridade!

Aí o negão tomou parte:

- Tá vendo vereador, você com essa mão de vaca! Eu disse que era melhor ir para um motel!... Puta merda...

Mas policial meteu o cala-boca:

- Vamo acabar com isso. Todo mundo pra delegacia!...

Na delegacia a situação, já de si delicadíssima, piorou. O tal negão injuriou-se. Estava num canto, amuado, querendo falar e sem coragem... Mas de repente, engoliu ar e emplacou:

- Não quero nem saber de nada. Eu quero é os cinqüenta real que o senhor me prometeu...

Ao que o vereador disse:

- Nada disso, o serviço foi incompleto...

E o policial interveio:

- Incompleto por quê? Tinha que comer o cu também?

E o negão respondeu:

- Não. Eu tinha que gozar na boca dele.

O vereador, constrangido, fez um que-sim. Aí o negão não perdeu tempo:

- Então o senhor me dá pelo menos trinta conto... Ó seu policial, já é a terceira vez que a gente faz isso. Eu não sou viado não, só faço pelo dinheiro, por necessidade.

O policial civil de plantão, estarrecido com aquilo tudo, olhou para a cara amuada do vereador. Observou que o mesmo tinha uma gosma amarelada no bigode, que não sabia nem tampouco desejava saber o que era. Mandou que o parlamentar limpasse o imponente bigodão – a escova de pica, no vulgo policial. Por fim o delegado, atônito diante de tanta fuleragem, arrematou:

- Pessoal, dívidas devem ser cobrados no Juizado de Pequenas Causas. Negão, tabele a chupada, junte nota de serviço e se vire... Agora todo mundo fora que eu já estou me sentindo enjoado, com espuma na boca...

Aí o negão resolveu exercer a cidadania:

- Nada disso doutor. Só saio daqui com os cinqüenta conto... Home é home!... Se o senhor quiser eu dou testemunha de tudo, não quero nem saber...

E o delegado:

- Negão, é o seguinte: já mandei você abrir no mundo; ou você vai ou fica no xadrez...
- Sendo assim eu vou, mas só saio da frente da casa dele quando ele me pagar!
- Eu já disse que não devo nada...
- Se nóis não tivesse perdido o crima, eu terminava o serviço agora mesmo... A culpa não foi minha...

E o delegado, já quase arrancando os cabelos, esbravejou:

- Hômi, pelo amor de Deus! Se você quiser fazer sentinela na casa do outro faça, mas saiam daqui que eu tô em tempo de vomitar!

E lá se foram todos. O negão realmente fez sentinela, só que na esquina do vereador, e de lá só saiu quando fechou a parada nos quarenta reais, ficando a dever um boquete promocional por trinta e cinco, quando a poeira sentasse.

III

Naturalmente que esse boato se espalhou. Os membros da câmara municipal ficaram apavorados, perderam o sono – como diz o povão: quem tem cu tem medo... Uns até andavam pelas ruas cuspindo pelos cantos, querendo mostrar ao povo sua repugna ao ato. Quase diziam, depois da cuspida:

- Estão vendo aqui no chão?! Venham ver que evapora, evapora, esta disgrama evapora!... 

No dia seguinte foi um corre-corre de vereadores às rádios locais para meterem a boca no trombone e esclarecer que não foram eles que meteram a boca na botija. Diziam todos, em resumo: vereador ora? Ora! Mas eu não orei. Se oraram, oraram, mas quem ora que responda pelo que orou, pois há oratórias e oratórias, e uma infâmia dessas, esbravejavam, não se engole a seco, ora-ora-ora!

TENHO DITO. 

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