Pablo de Carvalho

Minha foto
Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sábado, 30 de agosto de 2014

Marina, Dilma, Aécio, Eduardo e Paulo: as ficções da realidade.

A trágica morte de Eduardo Campos lançou o Brasil inteiro a uma reviravolta que nos deixou perplexos. Aqui em Pernambuco, o espanto é ao mesmo tempo federal e estadual. Nem a mente mais criativa jamais imaginaria um fato tão improvável (o acidente) mudando a história de um país de ponta-cabeça, contra toda análise possível.

Eduardo morre e Marina surge das sombras com uma série de características cuja combinação é o pesadelo dos adversários. Marina não tem um passado que fede a lixo, como é o do PT, nem traz em si a fama de direita-reacionária, essa lepra abstrata que inocularam na reputação do PSDB. Nem também tem a fama de oportunista que tanto calha ao PMDB. O PT e seus militantes ameaçaram criar o caos no país caso Aécio vencesse, mas essa ameaça não cabe contra Marina, que é semente da mesma árvore, que é esquerda mais à esquerda. Marina tem uma história de sofrimento, pobreza e superação, tão ao gosto do coitadismo nacional, que ama o Lula pau-de-arara e a Dilma torturada. Mas não ficamos apenas por aí: a vida de Marina aglomera o sofrimento das florestas, dos empregados domésticos, dos militantes assassinados, da mulher e negra e que – pasmem – intelectualizou-se, o que falta a Lula no currículo e a Dilma na capacidade. Ah, sim: ela é uma mulher religiosa. Que “personagem” infernal, essa Marina Silva (Silva vem de Selva...), e que enredo fantástico a fez roubar a cena! (Vejo a agenda dos candidatos: Marina se reúne com usineiros e defende a indústria do açúcar e pede que ela se desenvolva, mas que respeite o meio ambiente; Dilma se reúne com defensores da reforma agrária militante, amarra um lenço ao pescoço e discursa...).

Na minha humilde análise, não há como a “personagem” Marina Silva deixar de vencer esse drama eleitoral, salvo a improvável reviravolta dentro da reviravolta, numa espécie de esquizofrenia do senhor Acaso.

Em Pernambuco, a morte de Eduardo massacra o povo por uma semana, e essa tortura de colher pedaços do corpo de um pernambucano dilacerado (falo com total respeito e ainda enlutado pelo ocorrido) e sonhador aumenta o sentimento de amor e o de gratidão, temperados com o fermento da exposição das qualidades de Eduardo como pai de família dedicado a cinco filhos. Automaticamente (eis de novo a mágica mão de nosso roteirista invisível!) a imagem de Paulo Câmara é associada à orfandade dos filhos de Eduardo, meio como um órfão político, e ser grato a Eduardo é cumprir uma espécie de último desejo do morto: eleger Paulo Câmara. Daí, seus números explodem e ele passa a ser um concorrente parelha a Armando Monteiro, saindo do ostracismo junto com Marina Silva, cuja liderança à corrida presidencial, aliás, também é reforço pesado à candidatura de Paulo.

(A Copa do Mundo, perto de um “espetáculo” desses, passou a ser um nada dentro de nada, uma diversão vulgar...)

Eu ainda não desci totalmente de meu espanto, e portanto não tenho uma posição quanto às consequências de tudo para os próximos quatro anos, e nem sei mesmo se tenho competência para firmar um entendimento sobre tais complexidades. Mas, como creio em Deus, rezo.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O cavalo em nós


Um homicídio em Cavaleiro (não a cavaleiro, mas em Cavaleiro, Jaboatão, Pernambuco).

Desloca-se a equipe do Departamento de Homicídios. A noite está turva, fria, úmida que só. Há uma chuva que vem, molha a vida e se retira, como o choro do povo em romaria ao enterro de hoje: dos corpos de Eduardo Campos e seus acompanhantes no voo que virou desgraça. A tragédia também é aqui: morte por disparo de arma de fogo em Cavaleiro.

Entramos na casa. À esquerda da porta da frente, o cadáver de um jovem de dezesseis anos, viciado e envolvido nos hábitos do vício: furtos etc., está caído na quina, com três tiros na cabeça, um no peito e outro nas costas – pelo menos foi o que deu pra contar na hora. O atirador entrara, afastara a mãe da vítima, que havia, coitada, aberto os braços em cruz e exclamado: é meu filho, o que houve?! E depois, mãe à esquerda e filho em destaque: tan-tan-tantan-tan!

Lá fora, mãe e irmãs do morto gritavam enormemente contra a noite de chumbo: meu Deus é mentira! Meu filho; meu irmão, ai que dor, ai que dor! Levem ele não; levem ele não! Ai, meu Deus, por quê? Que dor; ai meu Deus que dor!

Dentro da casa, que estava fechada por causa da chuva, tudo cheirava a sangue, lama e comida barata.

Entra um parente, olha o defunto e lastima: ô meu velho, por quê? Eu te dei tanto conselho!

Longe dali, no cemitério de Santo Amaro, Eduardo Campos jazia, recém-sepultado, e a perplexidade do povo pernambucano podia enfim fixar-se em algo real: a lápide, a terra e o epitáfio. A tristeza, galopante por todo o Estado, caía por fim como um pano preto que estivesse agitado por uma tempestade e agora pousasse, em silêncio e dor, por cima de tudo.

– Meu Deus é mentira! Meu filho; meu irmão, ai que dor, ai que dor! Levem ele não; levem ele não! Ai, meu deus, por quê? Que dor; ai meu Deus que dor!

Os peritos catam projéteis, o IML chega para recolher o corpo, o sangue começa a engrossar, e faz noite total, de chumbo absoluto em tons relativos. A mãe do filho morto desmaia. A imprensa chega, e vejo refletores. Um vizinho entra e, olhando o morto com ternura, sentencia, em tom superior de espectador duplamente privilegiado:

– Meu irmão, tô chegando agora do Palácio da Princesa (sic), do enterro de Eduardo Campos. E agora esse outro negócio aqui...

Um cunhado da vítima diz:

– Eu vi o enterro pela TV. Que coisa triste, mô véi...

Estufando o peito, olhando para o cadáver no chão com um pouco de desprezo e alguma vaidade ferida, ele arremata:

– Mas eu estava lá, EU estava lá! Eu vi a tristeza do povo, mô véi, eu vi PESSOALMENTE! Veja aqui (aponta para um adesivo colado ao peito, com a foto de Eduardo Campos, no qual bate com a mão direita); veja aqui! Eu fui lá ver; EU vi o velóro!...

Com a mão ainda no adesivo e com aquela discreta mas indisfarçável superioridade que costumam ter os viajantes ante quem apenas lê sobre os países que eles visitaram, olhou novamente para o viciado banhado em sangue. Cedeu espaço ao IML, que ensacou o cadáver e partiu – e partimos.

A mãe e as irmãs ficaram chorando. A noite continuava escura e chuvosa. A uns poucos quilômetros dali ainda se poderia sentir no ar o cheiro da pólvora dos fogos que explodiram em homenagem a Eduardo Campos.

Aquele cheiro de pólvora ainda estava nas narinas do homem (aventureiro dos infernos) que havia, pessoalmente, testemunhado a desgraça do povo.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Brutus pensando.


O busto de Brutus, de Miguel Ângelo, olha por cima do ombro esquerdo. No seu olhar há um paradoxo que esconde e revela um segredo. O olhar é pesar e é medo, mas é também uma seta para o futuro que lhe abriu o ato homicida. Brutus, tal qual um menino, no proibido vê desgraça e vê vida. Que porte nobre ao redor da cabeça pequena! E é somente de Brutus que Brutus sente pena; não de César, que ainda detesta e seu passado enorme é bem que ao assassino não presta, pois anexo à morte. Sua túnica romana é mais nobre que seus cabelos, que seus pelos, que aquilo tudo que cobre. A presilha de ouro vale mais que seu olhar opaco. E mesmo matador, soberbo nobre em maravilha, relincha e sente-se fraco. O busto de Brutus tem olheiras fundas, e uma testa tensa: é o remorso que vem em ondas e não a cabeça que pensa – e pondo o escrito as almas desnudas, chamo-o Brutus e poderia chamá-lo Judas.