Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O cavalo em nós


Um homicídio em Cavaleiro (não a cavaleiro, mas em Cavaleiro, Jaboatão, Pernambuco).

Desloca-se a equipe do Departamento de Homicídios. A noite está turva, fria, úmida que só. Há uma chuva que vem, molha a vida e se retira, como o choro do povo em romaria ao enterro de hoje: dos corpos de Eduardo Campos e seus acompanhantes no voo que virou desgraça. A tragédia também é aqui: morte por disparo de arma de fogo em Cavaleiro.

Entramos na casa. À esquerda da porta da frente, o cadáver de um jovem de dezesseis anos, viciado e envolvido nos hábitos do vício: furtos etc., está caído na quina, com três tiros na cabeça, um no peito e outro nas costas – pelo menos foi o que deu pra contar na hora. O atirador entrara, afastara a mãe da vítima, que havia, coitada, aberto os braços em cruz e exclamado: é meu filho, o que houve?! E depois, mãe à esquerda e filho em destaque: tan-tan-tantan-tan!

Lá fora, mãe e irmãs do morto gritavam enormemente contra a noite de chumbo: meu Deus é mentira! Meu filho; meu irmão, ai que dor, ai que dor! Levem ele não; levem ele não! Ai, meu Deus, por quê? Que dor; ai meu Deus que dor!

Dentro da casa, que estava fechada por causa da chuva, tudo cheirava a sangue, lama e comida barata.

Entra um parente, olha o defunto e lastima: ô meu velho, por quê? Eu te dei tanto conselho!

Longe dali, no cemitério de Santo Amaro, Eduardo Campos jazia, recém-sepultado, e a perplexidade do povo pernambucano podia enfim fixar-se em algo real: a lápide, a terra e o epitáfio. A tristeza, galopante por todo o Estado, caía por fim como um pano preto que estivesse agitado por uma tempestade e agora pousasse, em silêncio e dor, por cima de tudo.

– Meu Deus é mentira! Meu filho; meu irmão, ai que dor, ai que dor! Levem ele não; levem ele não! Ai, meu deus, por quê? Que dor; ai meu Deus que dor!

Os peritos catam projéteis, o IML chega para recolher o corpo, o sangue começa a engrossar, e faz noite total, de chumbo absoluto em tons relativos. A mãe do filho morto desmaia. A imprensa chega, e vejo refletores. Um vizinho entra e, olhando o morto com ternura, sentencia, em tom superior de espectador duplamente privilegiado:

– Meu irmão, tô chegando agora do Palácio da Princesa (sic), do enterro de Eduardo Campos. E agora esse outro negócio aqui...

Um cunhado da vítima diz:

– Eu vi o enterro pela TV. Que coisa triste, mô véi...

Estufando o peito, olhando para o cadáver no chão com um pouco de desprezo e alguma vaidade ferida, ele arremata:

– Mas eu estava lá, EU estava lá! Eu vi a tristeza do povo, mô véi, eu vi PESSOALMENTE! Veja aqui (aponta para um adesivo colado ao peito, com a foto de Eduardo Campos, no qual bate com a mão direita); veja aqui! Eu fui lá ver; EU vi o velóro!...

Com a mão ainda no adesivo e com aquela discreta mas indisfarçável superioridade que costumam ter os viajantes ante quem apenas lê sobre os países que eles visitaram, olhou novamente para o viciado banhado em sangue. Cedeu espaço ao IML, que ensacou o cadáver e partiu – e partimos.

A mãe e as irmãs ficaram chorando. A noite continuava escura e chuvosa. A uns poucos quilômetros dali ainda se poderia sentir no ar o cheiro da pólvora dos fogos que explodiram em homenagem a Eduardo Campos.

Aquele cheiro de pólvora ainda estava nas narinas do homem (aventureiro dos infernos) que havia, pessoalmente, testemunhado a desgraça do povo.

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