O investigador me avisa:
– Delegado, homicídio no Morro da Catita...
– Consumado?
– Consumado. Tiro de doze na cara.
– Vamos nessa.
Chovia, mas não, como na crônica anterior, aquela chuva esporádica. Era uma chuva convicta, de norte a sul e por cima de tudo.
Paramos a viatura ao pé do morro, junto a um grupo de gente desconfiada.
– Bom dia. Morro da Catita?
– Sei não. Moro aqui há pouco tempo. Sei não, vivo de casa pro trabalho, nem quase conheço ninguém por aqui. Pergunte ali na venda...
Mais adiante:
– Bom dia. Morro da Catita?
– O senhor vai aqui direito, passa a pontezinha, pega à esquerda, direita e depois esquerda de novo, acha o clube e segue até em cima...
Adiante, desembarcamos e lá estava uma ladeira enorme, coberta daquela lama covarde que faz o sujeito patinar de braços abertos feito uma espécie de equilibrista donzelo.
Uma senhora sai do quintal e fala:
– Doutor, quer um guarda-chuva emprestado?
– Quero sim, minha senhora; obrigado!
E lá vamos, as pernas abertas, fechadas, pé ante pé, passo aqui, passo acolá, uma camada de barro acumulando na sola, cai-não-cai, eita!, ôpa!, olha!, vixe!, segura!, agora foi quase!, e o povo achando graça: é bom ver umas autoridades passando aperto. Chegamos sem queda, amém.
Olho pela porta do barraco. A vítima está deitada feito uma jia, os punhos cerrados, com o rosto arrebentando, mas ainda rosto.
– Terá sido mesmo doze, pessoal?
– Acho que não. A doze teria virado a cara dele ao avesso. Tá mais pra soca-soca. Ou pode ser uma munição fuleragem...
Faz sentido. O tiro de doze traz em si uma abocanhada. Leva sempre, quando encostado, um naco bom de carne, que seus dentes de chumbo (lembrei-me de um samba sobre a solidão...) mastigam e do bolo deformado fica uma inumanidade: a falta do crânio, do rosto, do braço, do coração...
A imprensa chega. As pessoas começam a reclamar alto:
– Aqui falta água! Seu repóti, cadê a prefeitura? Se quiser dou intrevista!
As primeiras informações:
– Era viciado. Bebia muito. Gostava de mulher, e não deixava passar nada: aquelas mulheres noiadas, caça-rato, ele não perdoava nenhuma.
– Traficava?
–Não se sabe. Ontem à noite, antes um pouco do crime, estava bebendo na bodega de Nivaldo.
Sobe lameiro um pouquinho mais, bate-se à porta de seu Nivaldo.
– Como foi ontem? Teve confusão?
– Não sinhô. Ele tava com Quati bebendo, mas saiu antes de Quati; era um cliente calmo. Nunca fez confusão com ninguém.
Desce lameiro, bate-se à porta de Quati. Quati, alcóolatra evidente, está fumando e se tremendo todinho, e exala uma catinga de cachaça que chega a dar tontura. Puxando as lembranças da bebedeira, com aquele olhar vago de ressaca, ele retira uns painéis dessa confusão mental que é rebarba de pileque, e diz:
– Era um cabra bom, não era de confusão. Saiu antes de mim. Escutei o tiro, mas pensei que era só tiroteio.
A mulher de Quati, preta, miúda e conformada, acompanha a entrevista do oitão.
– Usava droga, traficava?
– Se fazia isso não sei, ne nunca vi. Só cana mesmo eu tomava com ele e de vez em quando...
– Ele tinha mulher, namorada?
– Quando bebia falava de uma tal Verônica, que mora acolá...
Puxou uma tragada com a mão trêmula, o braço feridendo de pinguço, e olhou para o horizonte.
– Obrigado.
– Por nada.
– Posso usar seu banheiro?
– Pode sim senhor.
Casa de favela parece que não abre nunca: tem aquele cheiro de acumulação, aquele bafo forte que mistura comida, poeira, mijo e tudo quanto é mobília e coisa usada.
Desce lama, escorrego, chega-se à casa de Verônica. Mas, no trajeto:
– Aqui falta água! A prefeitura abandonou nóis!
Apareceu uma nesga de sol. Subiu aquele calor pegajoso. A lama ficou ainda mais traiçoeira, e a juntar nas botas da gente com mais volume: ficamos meio como astronautas patéticos.
A casa de verônica tinha umas flores bonitas na entrada. É impossível vê-las e não cair em pieguice: uma flor brotou no monturo!
Um pouco acima, uma velhinha abriu as janelas de seu barraco e pôs-se a fumar em elegante placidez.
Sai Verônica. Gorda, tatuagem no braço, tranquila. Mãe de três filhos.
– Verônica?
– Sim.
Passa uma mulher e diz:
– Tô sabendo que você tá de bucho de novo!
– Tô não, minha filha. Tomei um comprimido e desceu tudinho!
Risos em comum, e prosseguimos:
– Você era namorada da vítima?
– Eu não. Ele vinha aqui, a gente bebia, ficava e depois ele subia pra lá pro barraco dele.
Olhei novamente para as flores.
– Você sabe como isso aconteceu?
– Eu...
A imprensa vinha descendo. Alguém nos interrompe;
– Pobre sempre se arromba! Cadê nossa água? Cadê a prefeitura?!
Verônica prossegue:
– Eu não sei não. Vieram me dizer, aí fui lá ver, fiquei incrível e voltei pra casa...
– Ele era viciado, traficava, tinha inimigos?
– Que eu saiba, não.
– Seu ex-marido tinha ciúmes?
– Tinha não. Até os dois se falavam, assim, passando, tá entendendo?
– Sei... Obrigado.
Saímos, conversando:
– Meu velho, essa investigação tá de rosca...
– Tem que aprofundar mais devagar, na delegacia...
Voltamos ao ponto de desembarque. Devolvi o guarda-chuva à gentil senhora. Nossos pés estavam cobertos de lama, pareciam tijolos sem fornada. Antes de entrar na viatura abri os jornais sobre o assoalho, para não emporcalhá-lo, sentei-me e plantei minhas botas nas manchetes do dia.
*fotografias do local dos fatos.
Pablo de Carvalho
- Pablo de Carvalho
- Recife, Pernambuco, Brazil
- Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.
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