Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O homicídio, sempre igual e sempre diferente

O investigador me avisa:

– Delegado, homicídio no Morro da Catita...
– Consumado?
– Consumado. Tiro de doze na cara.
– Vamos nessa.

Chovia, mas não, como na crônica anterior, aquela chuva esporádica. Era uma chuva convicta, de norte a sul e por cima de tudo.

Paramos a viatura ao pé do morro, junto a um grupo de gente desconfiada.

– Bom dia. Morro da Catita?
– Sei não. Moro aqui há pouco tempo. Sei não, vivo de casa pro trabalho, nem quase conheço ninguém por aqui. Pergunte ali na venda...

Mais adiante:

– Bom dia. Morro da Catita?
– O senhor vai aqui direito, passa a pontezinha, pega à esquerda, direita e depois esquerda de novo, acha o clube e segue até em cima...

Adiante, desembarcamos e lá estava uma ladeira enorme, coberta daquela lama covarde que faz o sujeito patinar de braços abertos feito uma espécie de equilibrista donzelo.

Uma senhora sai do quintal e fala:

– Doutor, quer um guarda-chuva emprestado?
– Quero sim, minha senhora; obrigado!

E lá vamos, as pernas abertas, fechadas, pé ante pé, passo aqui, passo acolá, uma camada de barro acumulando na sola, cai-não-cai, eita!, ôpa!, olha!, vixe!, segura!, agora foi quase!, e o povo achando graça: é bom ver umas autoridades passando aperto. Chegamos sem queda, amém.

Olho pela porta do barraco. A vítima está deitada feito uma jia, os punhos cerrados, com o rosto arrebentando, mas ainda rosto.

– Terá sido mesmo doze, pessoal?
– Acho que não. A doze teria virado a cara dele ao avesso. Tá mais pra soca-soca. Ou pode ser uma munição fuleragem...

Faz sentido. O tiro de doze traz em si uma abocanhada. Leva sempre, quando encostado, um naco bom de carne, que seus dentes de chumbo (lembrei-me de um samba sobre a solidão...) mastigam e do bolo deformado fica uma inumanidade: a falta do crânio, do rosto, do braço, do coração...

A imprensa chega. As pessoas começam a reclamar alto:

– Aqui falta água! Seu repóti, cadê a prefeitura? Se quiser dou intrevista!

As primeiras informações:

– Era viciado. Bebia muito. Gostava de mulher, e não deixava passar nada: aquelas mulheres noiadas, caça-rato, ele não perdoava nenhuma.
– Traficava?
–Não se sabe. Ontem à noite, antes um pouco do crime, estava bebendo na bodega de Nivaldo.

Sobe lameiro um pouquinho mais, bate-se à porta de seu Nivaldo.

– Como foi ontem? Teve confusão?
– Não sinhô. Ele tava com Quati bebendo, mas saiu antes de Quati; era um cliente calmo. Nunca fez confusão com ninguém.

Desce lameiro, bate-se à porta de Quati. Quati, alcóolatra evidente, está fumando e se tremendo todinho, e exala uma catinga de cachaça que chega a dar tontura. Puxando as lembranças da bebedeira, com aquele olhar vago de ressaca, ele retira uns painéis dessa confusão mental que é rebarba de pileque, e diz:

– Era um cabra bom, não era de confusão. Saiu antes de mim. Escutei o tiro, mas pensei que era só tiroteio.

A mulher de Quati, preta, miúda e conformada, acompanha a entrevista do oitão.

– Usava droga, traficava?
– Se fazia isso não sei, ne nunca vi. Só cana mesmo eu tomava com ele e de vez em quando...
– Ele tinha mulher, namorada?
– Quando bebia falava de uma tal Verônica, que mora acolá...

Puxou uma tragada com a mão trêmula, o braço feridendo de pinguço, e olhou para o horizonte.

– Obrigado.
– Por nada.
– Posso usar seu banheiro?
– Pode sim senhor.

Casa de favela parece que não abre nunca: tem aquele cheiro de acumulação, aquele bafo forte que mistura comida, poeira, mijo e tudo quanto é mobília e coisa usada.

Desce lama, escorrego, chega-se à casa de Verônica. Mas, no trajeto:

– Aqui falta água! A prefeitura abandonou nóis!

Apareceu uma nesga de sol. Subiu aquele calor pegajoso. A lama ficou ainda mais traiçoeira, e a juntar nas botas da gente com mais volume: ficamos meio como astronautas patéticos.

A casa de verônica tinha umas flores bonitas na entrada. É impossível vê-las e não cair em pieguice: uma flor brotou no monturo!

Um pouco acima, uma velhinha abriu as janelas de seu barraco e pôs-se a fumar em elegante placidez.

Sai Verônica. Gorda, tatuagem no braço, tranquila. Mãe de três filhos.

– Verônica?
– Sim.

Passa uma mulher e diz:

– Tô sabendo que você tá de bucho de novo!
– Tô não, minha filha. Tomei um comprimido e desceu tudinho!

Risos em comum, e prosseguimos:

– Você era namorada da vítima?
– Eu não. Ele vinha aqui, a gente bebia, ficava e depois ele subia pra lá pro barraco dele.

Olhei novamente para as flores.

– Você sabe como isso aconteceu?
– Eu...

A imprensa vinha descendo. Alguém nos interrompe;

– Pobre sempre se arromba! Cadê nossa água? Cadê a prefeitura?!

Verônica prossegue:

– Eu não sei não. Vieram me dizer, aí fui lá ver, fiquei incrível e voltei pra casa...
– Ele era viciado, traficava, tinha inimigos?
– Que eu saiba, não.
– Seu ex-marido tinha ciúmes?
– Tinha não. Até os dois se falavam, assim, passando, tá entendendo?
– Sei... Obrigado.

Saímos, conversando:

– Meu velho, essa investigação tá de rosca...
– Tem que aprofundar mais devagar, na delegacia...

Voltamos ao ponto de desembarque. Devolvi o guarda-chuva à gentil senhora. Nossos pés estavam cobertos de lama, pareciam tijolos sem fornada. Antes de entrar na viatura abri os jornais sobre o assoalho, para não emporcalhá-lo, sentei-me e plantei minhas botas nas manchetes do dia.

*fotografias do local dos fatos.

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