Pablo de Carvalho

Minha foto
Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 21 de março de 2014

A TEORIA DOS DENTES

Bobagem é achar que os homens de hoje agem conforme a mente ou o coração. Bobagem pura. Criancice. Nem se repita, com patético lirismo, que os olhos são os espelhos d’alma – eles foram sepultados também. A parte central e importante do homem contemporâneo são os dentes. E os dentes, brancos, alvejados em longas sessões no dentista, servem, basicamente, a uma finalidade; melhor, a uma que se divide em duas. Comer é secundário; o imperativo é mostrar os dentes. Mostrá-los como em boca de cavalos, dentaduras em outdoor, víboras de cabeça iminente e corpo afastado. Primeira finalidade: sorrir; sorrir sempre. Sorrir ao acordar, durante o desjejum, no carro, no trabalho, ao sair e ao chegar e até sorrir dormindo. O homem contemporâneo é sorridente o tempo inteiro. O vencedor, o que está bem, o que não pode brigar com pessoa alguma; o homem contrário à contrariedade, superior à dor e à emoção – nem de alegria se permite chorar. Seu sorriso é seu R.G. e o signo maior de sua adesão à eterna superioridade humana quanto ao sentimento da vida. Sorrir. Sorrir. Sorrir! Sorrir diante do crime, da punhalada, da bancarrota, da desgraça que aceita e fomentada. Dar boa noite sorrindo, trancar-se no quarto, enfiar uma bala na cabeça sorrindo e deixar uma sorridente carta de suicida – melhor: meter uma bala no peito, para não estragar o sorriso durante o velório. Sorrir do erro, da crítica, da contradição. E é um sorriso sempre distante do chão por onde os homens caminham. Sorrir é ser altíssimo! Sorrir... É preciso também mostrar os dentes para morder. Morder. Morder. Morder a jugular dos outros, a reputação de alguém; apressar-se sobre o pescoço alheio como um vampiro. Morder. Morder. Morder o sucesso. O imediatismo é uma dentada da moda. Não mastigar nem muito menos ruminar nada (nem pensamento): morder é a ordem, principalmente se o sorriso falha – ou não; pode-se morder por mera questão de preferência. Pode-se, e às vezes é até um deve-se, misturar as duas funções. É sucesso certo, atestado e confirmado pelas capas de revista. Sorrir e depois morder, ou morder e depois sorrir: – Bom dia, colega (sorrindo)! O colega dá-lhe as costas e ele taca-lhe uma dentada. Depois da deglutição volta a sorrir. O ator, o empresário público, o político profissional, o vizinho, o sanguessuga familiar, o intelectual-só-espelho, o que luta por justiça dissolvido em coletivo, todos, todos, todos apenas mordem e sorriem, sorriem e mordem, e tudo é um relativo conceito dentro de um absoluto cinismo. Sorrir. Morder. Pode-se variar a ordem, a intensidade e as repetições, mas não o padrão irrenunciável: o sorrir-e-morder é toda a individualidade de hoje. A síntese obrigatória. A perfeição em dois atos.

Eu, um dinossauro confesso (também, como negá-lo?), confesso que sou daqueles bobos que gostam do azul do céu e da palidez da lua – por extensão, gosto das coisas claras. Tenho um otimismo crônico que insiste em se rebelar contra muito do que escrevo. Gosto de sentar na varanda de casa, acender um cigarro e estalar nos lábios a delícia da cerveja. Gosto de música. Gosto do amor. Minha família é meu encanto. Penso nos outros também. Me emociono, choro. Acho graça, rio. Tenho sorrido e chorado minha vida inteira em plena contramão do gesto e do espírito gerais – mas às vezes também mordo, é duro confessar. Inobstante, tento evitar, com muito pudor, mostrar os dentes. A vida de hoje me causa uma profunda timidez.

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Muito bom, acho que sou um "dinossauro e bobo" tb.

    ResponderExcluir
  3. Vamos fundar a confraria dos dinossauros bobos, acho que tem muita gente que não compactua com a "sociedade das hienas"

    ResponderExcluir