Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 28 de março de 2014

O espelho


Era cedo quando eu acordei. O café dava fumaça para o espaço, a xícara na mão, a mão amanhecida suspensa porque eu estava parado na varanda do apartamento. Olhei pelas grades da janela. Lá embaixo, uma casa. No quintal dessa casa, uma mangueira. Debaixo dessa mangueira, quatro cadeiras, uma mesa e uma churrasqueira cheia de cinzas. Quanto terá de bem essa sombra, sentar-se nela com amigos, sentir os pés no chão e beber cerveja? A casa está distante. Meus olhos estão presos a imaginar o dia em que eu tive um quintal. Tomo um gole indiferente e volto para dentro. Visto-me, desço e entro no carro. Ligo o condicionador de ar. Pelo vidro, vejo crianças que brincam na última praça do bairro. A praça tem espaço e árvores e as crianças dão-se as mãos. Já não lembro como será o toque da mão amiga, a corrida solta pelo espaço, o sonho projetado na ilusão doce do além das ruas. Como será ser livre para correr sem trazer em si a mácula das restrições? O sinal abriu, seguimos. Vejo o ciclista que passa entre os carros, e dele tenho um dó tremendo e ao mesmo tempo sinto um orgulho humano por ele empurrar seu sonho de impulsão por entre coisas que podem triturá-lo. Sinal fechado. Vejo os funcionários que passam pela frente da igreja também fechada, os muros pichados. Saberão eles fechar-se em oração? Poderei um dia perguntar-lhes: amigos, o que vocês escutam quando juntam as mãos em quietude e inspiram a sensação de existir? Ou a arte de pensar estará deles tão próxima e distante quanto a possibilidade de minha indagação rebatendo dentro do automóvel? Sigo e chego. Subo ao meu gabinete. Diante de mim, em papéis chamados de inquérito, está o drama das pessoas que se espremem e se agridem e não se enxergam justamente por estarem tão empilhadas umas nas outras. Fariam elas tanto mal entre si se pudessem divisar os olhos das outras a uma distância que fosse curta o bastante para o sentimento, e longa demais para o golpe e a injúria? Bate o meio dia. Almoço uma quentinha estreita, de uma comida impessoal, com um garfo mecânico, numa mastigação vazia. Não é tarde, mas é a tarde em sua melancolia que vem bater ponto nesta circunscrição. Correm palavras e ponteiros. Fim de expediente. Volto ao carro e entro numa noite que não vi acontecer (que desperdício, meu Deus!). A escuridão está em tudo, e as luzes dos postes, e as luzes dos faróis, e as luzes dos semáforos só servem para mostrar quão imensa é a escuridão. Chego. Subo. Visto uma bermuda. Em frente ao espelho, noto que minha barba anda crescida, e, tentando sentir o meu rosto, encosto os dedos no espelho.

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