Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

De repente, eloquência! (crônica policial. estilo: cômico)


(Como toda crônica policial deste blog, baseada em fatos verídicos)

Noite funda. Terça-feira. Plantão tranquilo. Os policiais dormem depois de muito dominó e conversa fora demais. Nas celas, os presos, sempre de insônia, assistem à televisão, o volume baixo pra não perturbar o plácido sono dos agentes da lei. Dois urubus também dormem, num coqueiro ao lado da delegacia, fechados em si como pequeninas estátuas da Morte. Toda a cidadezinha em silêncio, um céu extenso, a neblina já começando a se formar pelos grotões ao redor. Só um vigilante em vigília, circulando sobre a Caloi Barra Circular, soprando seu apito de quando em vez, e com tanta empolgação que só ouvindo não se imaginaria que ele não chegasse a pesar sessenta quilos, o que, pra falar a verdade, já nem se observa mais, pois os apitos já são tão parte da noite como o sereno, e não incomodam ninguém, nem os ladrões.

Os presos ouvem uma sirene soar, longe, como um mau presságio, e logo se aproximando, ganhado realidade, e junto com ela o som do motor trabalhando e dos pneus em atrito com o calçamento da rua. Parou em frente à delegacia. Bateram. Um policial se levantou, meio zonzo e friorento, calçou as sandálias e abriu a porta. Eram três policiais militares conduzindo um preso. O civil os cumprimentou, fazendo-os entrar; chamou o colega que ainda dormia, voltou e perguntou aos PMs que é que havia. Na verdade não era nada aparentemente incomum. Um sujeito completamente embriagado, algemado pelas costas, sem camisa, descalço, magro, consideravelmente agitado, todo sujo, girando os olhos como se fosse desmaiar, e meio amassado em virtude das “quedas” da bebedeira etc.

Um militar fez o conduzido sentar-se, não com muita delicadeza, e começou a explicar:

– Esse feladapu...“piiii!” encheu a tampa de cachaça, chegou em casa alterado, deu umas lapada na mulher dele, incomodou a vizinhança, botou a rol... “piii!” de fora no meio da rua, mijou no muro e por aí foi; olhe, pintou miséria! E ainda desacatou a autoridade.
– Desacatou como?
– Foi assim: chegamo lá e demos voz de prisão. O cabrassafado levantou os braço na hora, mas esqueceu a rol...“piiiii!” do lado de fora, e ficou rindo pelo canto da boca. Dei-lhe logo um carinho no pé da orelha, mandei ele guardar aquela po... “piiiii!” e coloquei ele de costas pra revistar. Pois não é que quando eu passava a mão pelos bolsos de trás dele, ele olhou de banda e me perguntou: “Quer o c... “piiiii”, senhor? Por que não me beija antes?” Dei-lhe outro desacerto e trouxe esse cabrassafado pra cá. As testemunhas já tão chegando.

Do seu cantinho, o preso fazia gestos de negação, como se se defendesse daquelas acusações pra um fantasma que estivesse à sua frente, e tentava balbuciar alguma palavra, explicar-se, mas só saía de sua boca um sopro cheirando forte a bebida.

Disse o policial civil:

–Tá certo. Vai pro xadrez, seu cabradipeia!

O indigitado, olhar perdido, continuava a fazer aqueles gestos idiotas em negativa, parecendo hipnotizado.

– Vou buscar o recibo de presos, soldado; rapidinho.

Quando chegou o policial civil com o dito recibo, os militares levantaram o desordeiro pelo braço e o puseram em frente ao balcão da recepção. O “da-civil” então indagou:

– Nome completo...

Ao que o preso respondeu:

– Jocimé artrisgon...dos fans...
– Como é, homi? Entendi nada!
– É... é... ééééé... jasdingrrr... da ziv... mart...

Dizia ele com a cabeça solta, ora caindo à esquerda, ora à direita, ora girando sobre o pescoço.

– Rapaz, deixe de macacada. Diga aí o nome e o endereço, caral...“piiii!” de asa!
– É...dout... É...dês...dêspaí... ó... é jsmir...dox sts sississ...

Um PM, fazendo que ia danar uma munhecada no preso, exclamava:

– Avimaria, avimaria, avimaria três veiz! Hômi, que a gente só pode sair daqui com esse recibo no sovaco, e esse filho de sete put... “piiiii!” tá complicando! Diz teu nome, miséria!

Mas nada dele falar coisa com coisa, e a peleja prosseguia: o preso todo desarticulado, sem conseguir proferir uma palavra que se entendesse. Todo mundo querendo se deitar. O tempo passando, e nada de solução, e a paciência indo pelo ralo.

O PM que estava mais agitado partiu pra cima do biriteiro já de mão aberta, cara vermelha e bigode arrepiado. Mas aí um dos militares fez um gesto de contenção ao colega, e se aproximou sorrateiramente por trás do preso. Era um cana-velho de guerra, vinte anos de casa; cobra-criada, como se diz – e tranquilão, pouco adepto do esculacho. Observou a cena por uns instantes, franziu as sobrancelhas, esperou com calma a hora certa e encarou o ébrio, que o olhou nos olhos e deixou escapar um riso no canto do lábio.

A tensão aumentou com aquele cinismo desbragado. A pancada vai vadiar!, todos pensaram.

Foi então que o cana-velho, impassível, questionou:


– Ó pessoal, eu tô reconhecendo esse sujeito! Ele é aquele cara que estuprou aquela criancinha lá na chã, semana passada!

Todos calaram, e olharam o preso. O bêbado, numa piscar de olhos, arregalou as pupilas e argumentou, duro feito galo de briga, eloquente como Rui Barbosa:

– Não, meu senhor, que é isso! Eu não tenho nada a ver com aquela desgraça! Sou até amigo da família! Eu não estuprei ninguém não, nem diga uma heresia dessas, sangue de Cristo! Só hoje foi que eu bebi demais! Olhe, pode anotar aí e conferir com a vizinhança que eu sou de bem. Nome: Claudevan Inácio Bezerra dos Anjos; endereço: rua Professor Ambrózio Firminiano Gonzáles, número trezentos e trinta e três, chã. Deixa eu assinar esse recibo... Por favor, autoridades, me levem ao xadrez!

E PONTO FINAL.

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