Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Orai por mim, ou: “Ave-Nosso que estais na graça...” (crônica policial. estilo: cômico)



(Esta crônica foi feita com a colaboração de
Rodrigo Sarmento de Carvalho,
testemunha dos fatos)



Lá vinha ele, desembestado ladeira abaixo!

Era uma ladeira de calçamento, não muito íngreme, mas o infeliz vinha num aspecto de carreira incrível: a Barra Circular 86 gemendo, os para-lamas estalando e os retrovisores (que de retro já não tinham nada) enfiando luz na cara de todo mundo!

Pilotado essa máquina vermelha, o chumbeta Zé Cupim: os braços duros, a cara trepidando, as pernas escapando de quando em vez dos pedais e se abrindo como que para uma improvável decolagem.

E, de duas três: ou o infeliz era mais sortudo que João Alves, ou tinha um santo mais forte que Pedro, ou era um dublê sobre duas rodas, porque virava de banda, raspava a calçada, ziguezagueva entre os buracos, tirava fino num caminhão, ratava de pedaleira, fazia que ia e não ia, mas sempre voltava ao prumo! Tudo, claro, na maior elegância, tocando a “sirene” pras “moçoilas” e às vezes até, no ápice da ousadia, tirando uma das mãos do guidão e cumprimentando o povão.

Chegando à delegacia, fez a última evolução, estacionou a máquina e, cheio de estilo, deu de calcanhar no tripé cromado. Penteou a cabeleira, ajeitou os óculos “Istalonicroba”, suspendeu o cinto de fivela de vaqueiro e abriu o terceiro botão da camisa estampada que, por erro de contas, havia deixado preso, escondendo o medalhão de São Jorge.

Entrou na recepção, estufou o peito e saudou seus “colegas” agentes de polícia:

- Bom dia, senhores!

E os canas:

- Êita bafo de aguardente da porr...!
- Pu... mer..., Zé Cupim, caísse num barril de “mé”, porr...?

E o chumbeta, checando os arredores por cima das lentes, sussurrou:

- Pssss... Na moita!... O delegado tá aí?...
- Vem hoje não. É segunda-feira, tá esquecido?
- Ufa!... É que ontem teve o enterro da dona Maria Bendita.
- Maria Be-ne-di-ta!
- Perdão, Maria Bendi-ta... Aí, você sabe, eu só fui em consideração à família e coisa e tal, e tal e coisa...
- À família da garrafa?
- Olhe a heresia! Eu sou conhecido do pessoal, vocês sabem. Mas, por um acaso, o pessoal achou de beber o morto e, como minha emoção era grande...
- Sei. Do jeito que você gosta desse povo, ou você morre do coração ou de cirrose, porque vai gostar de furar cachaça em velório assim na casa de mamãe! É pecado, rapaz!
- Que é isso! Olha o respeito!... Ei, me arrumas um real pra eu comprar de pão?
- Daquele que é transparente e vem engarrafado, com rolha e tudo?
- Mas vocês não têm jeito!

Sentou-se e acendeu um cigarro.

- Corre que vai explodir!
- Olhe a brincadeira, assim os vagabundos não respeitam minha autoridade, porr...!
- Escuta, Zé, eu soube que seu Tristão tá muito mal. Mais pra lá que pra cá...
- Não diga! Digo: pobrezinho, conheço demais!
- Parece que de hoje não passa.
- É fogo!
- É, literalmente pra você: é fogo!
- Olhe a brincadeira, eu também sou agente da lei, caral...!

Pois não é que o policial estava certo! Naquele mesmo dia o senhor Tristão, médio comerciante local, a quem Zé Cupim jamais conheceu e viria jamais a conhecer, faleceu. No dia seguinte beberiam o defunto no velório, costume que, pra sorte de Zé Cupim, ainda é frequente em alguns interiores desta terra alagoana, como naquele em que o digno chumbeta morava.

Zé Cupim era sempre diplomático ao chegar ao velório:

- Bons dias! Venho representando o senhor delegado de polícia desta circunscrição...

Todo mundo já sabia que era, como se diz, “migué’ do Zé Cupim, alcoólatra inveterado, daqueles de braço fino, bigode riscado, canela seca, bucho protuberante e papada lustrosa: biriteiro desmoralizado que vivia de pedir coisas em nome “da delegacia de polícia desta comarca”.

No caso deste velório, Zé Cupim conhecia uma conhecida da empregada doméstica do senhor Tristão, que lhe deu o serviço todo: início às 09h30min. Menu: mariola, café, água e umas cinco garrafas da cobiçada cachaça (com um “plus”: era cachaça-de-cabeça!), fora outras especiarias. Proibido entrar de bermuda.

No dia do velório, Zé Cupim vestiu suas botinas e uma “beca legal”, como usava dizer. Montou na máquina e dirigiu-se à casa do finado, mas não sem antes passar na delegacia pra se gabar aos policiais.

Entrou, muito posudo, pegou a extensão do aparelho de rádio velho e quebrado, e começou a tirar onda:

- Atento delegacia de Cutia do Norte; atento delegacia de Cutia do Norte! Aqui é o Zé Cupim anunciando que vai a um comes-e-bebes de graça, enquanto o pessoal daí trabalha; tsssc-tssssc, atento!
- Óia, tá tirando onda, né, safado?! Pois a gente ia lhe oferecer essa meiotinha de cachaça aqui que a gente tava bebendo, mas num vamos mais!
- Que é isso, pessoal! É brincadeirinha...

Realmente, aquela terça-feira começava bem pro Zé Cupim: um “mé” logo de entrada, outro à espera, e esse de agora ainda ia ajudar a tornar a performance dramática mais verossímil lá no velório.

Acontece que Zé Cupim se empolgou: ainda de barriga vazia, tomou a “meiota” em três goladas fundas. Limpou os beiços, agradeceu, subiu na máquina e danou-se a pedalar. No meio do caminho a infeliz fez efeito, foi do bucho direto por quengo. Ele desequilibrou, ia decolando umas três vezes, mas manteve a boa sorte e conseguiu chegar ao destino.

Retirou os óculos, com estilo e sentimento, pendurou-os na corrente prateada e ficou junto ao caixão, mudo e profundo, sentindo o doce efeito do álcool se espalhar pelo sangue.

Daí a cinco minutos, mexendo só os pés, ele se afastou lentamente, o olhar arrasado. Chegou à mesa, tomou uma lapada, mordeu um pedaço de mariola e pôs-se na varanda, cigarro aceso, a meditar olhando pro horizonte, como se pensasse no defunto:

- P... m..., essa cachaça é da boa... Gente fina é outra coisa...

Voltou a ladear o caixão, mas no caminho de volta engoliu outro tanto. Fez que ia beber água, errou de garrafa e entornou outra dose. Foi lamentar-se a um altar que havia na sala, e enquanto se benzia virou mais uma lapada.

Chegou o padre.

O pessoal se alinhou de frente pro vigário – claro que Zé Cupim aproveitou a distração geral pra beber outro golinho-de-nada, e mais um de quebra.

O padre preparou a cerimônia, proferiu uns salmos e a ladainha começou.

Zé Cupim posicionou-se perto de uma cadeira, apoiou-se nela com a mão, meteu a outra no bolso, cravou os olhos no chão e estampou uma profunda expressão de fé e desalento.

Disse o padre:

- E agora, vamos rezar a oração que nosso Pai nos ensinou!

E o coro:

- Pai nosso que estás no céu...

Sendo que o Zé Cupim, apoiadinho como estava, e já de olhos cerrados, deu um levíssimo cochilo (só o biriteiro profissional domina a arte de dormir em pé), bem no comecinho do Padre-Nosso, e só acordou quando começou a Ave-Maria.

O coro seguia:

- Ave-maria...

Mas o Zé Cupim:

- Que estás no céu...

E o coro:

- O senhor é convosco...

E o Zé Cupim:

- Venha a nós o vosso reino...

Três ou quatro beatas olharam de banda, com aquele enjoo da censura.

O coro seguia:

- Bendita sois vós entre as mulheres...

E o Zé Cupim:

- Assim na terra como no céu...

O pessoal já começava a esquentar a cabeça.

O coro:

- Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus...

E o Zé Cupim:

- E perdoai as nossas ofensas...

O constrangimento já era indisfarçável.

O padre interrompeu a reza e danou um sermão:

- Filho de Deus, nós estamos na Ave-Maria...

- Então fud.., porque eu já tô pra lá de Bagdá!

O que se viu depois foi o pobre Zé Cupim rolando das mãos dos filhos do finado pela escada abaixo, junto com sua máquina vermelha, ambos amassados e incapazes de se locomover.

Dizem as más-línguas que, antes de adormecer ali mesmo, na calçada, abraçado à Caloi, o desventurado auxiliar da lei sussurrou: amém!



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