Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Quem é burro? (estilo policial)


Se tem uma coisa que aprendi durante os anos em que fui delegado de polícia no sertão, é que não é muito prudente tirar onda com um matuto.

O matuto, disse-o bem Zé Lezin, tem resposta pra tudo, e pensa ligeiro pra caramba, tornado um contra-ataque quase impossível porque, no mínimo, a resposta do não-matuto vem com o dobro de tempo, o que a faz, mesmo que boa, perder metade da graça. E digo mais: não é só pela malícia com que responde, não é só pela ligeireza da resposta; danada é a falsa ingenuidade que o matuto usa pra desmoralizar o oponente. Ele fala com desimportância, meio leso, muito casual, natural como quem dá bom dia, só na intenção de debochar do cidadão.

Eu, de minha parte, que por quase nada fico acanhado e de cara vermelha, gosto só de ouvir e guardar as sacadas do matuto – nada de atiçá-lo.

Pois bem, segue um causo que ocorreu em minha presença, durante uma oitiva de testemunha:

Um sujeito vinha, lá em Catolé do Rocha, cheio de cana, em cima duma motinha daquelas de tanque quadrado e placa amarela. Ele estava sem capacete nem nada, que por lá e acolá dos sertões as motos substituíram jumentos e cavalos, mas o capacete não fez o mesmo com os chapéus. E ele vinha enfiado na carreira pela rodovia quando, depois de uma curva, deparou com uma carroça. A moto não tinha freio, o condutor não tinha reflexo, e a carroça (guiada por outro bêbado) não tinha que estar ali.

Deu-se o óbvio: moto por baixo, motoqueiro pelos ares, hospital, óbito e menos um matuto a mais, e mais um matuto a menos.

Acontece que, num roçadinho de beira de estrada, havia um amigo do acidentado, que também era amigo do sujeito da carroça, a capinar, e ele viu tudo.

Intimei-o como testemunha.

Ele chegou à delegacia, matuto clássico: bigode riscado, chapéu, fala econômica, todo encolhido, olhando pro chão, com uma RG de 1975 no bolso da frente.

- Por favor, sente-se.
- Sim sinhô.

A escrivã tomou seus dados etc., e eu fui ouvi-lo pra saber do acontecido.

- Mestre, vamos direto aos fatos. Como a coisa se deu?
- Dotô, o cabra da moto, cumpadi meu de infânça, vinha todo coisado, rabianu a moto quinem doido, e estatelou-se por riba da carroça, dispois que fêiz a cuiva.
- O senhor acha que ele vinha bêbado?
- Avimaria! Pelo jeito, é coisa certa.
- Ok. E o cabra da carroça, vinha bêbado também?

O matutinho parou, olhou pro chão, interrogativo e lamentoso, e disse:

- Dotô, o cabra é meu amigo de infânça também...
- Sim, mas eu quero saber se ele estava com sinais de bebedeira...
- Maizi ele subriviveu...
- Eu sei, mas é importante eu saber desse fato, entende?
- Maizi, e eu vô fala dum cabra meu amigo?
- Ou isso, ou o senhor responde pelo falso...
- Então, dotô, eu só vô dizê uma coisa só que arresponde o que o sinhô qué, aí o sinhô vê...
- Diga.
- A carroça, dotô delegado, vinha guiada pelum burro...

Eu parei e olhei pro cidadão, primeiro com raiva, depois com uma profunda admiração. Não tive mais como fazer nenhuma pergunta. Encerrei a oitiva, apertei-lhe a mão com reverência, e fiquei, alisando a gravata, a contemplar meus pensamentos previsíveis, repetindo: “como é que pode?”

7 comentários:

  1. A sabedoria do matuto é a "peste" mesmo!
    E nós ainda nos achamos sabidos!!
    Gostei da Crônica!
    As policiais são as minhas preferidas mas tem algumas postagens suas que são de uma criatividade e mesmo genialidade ímpar.
    Um grande abraço.

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  2. Pablo,

    Só um matuto como vc pra escrever uma crônica com tanta sabedoria! Rsrs... Abs...

    Jullyard

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  3. Essa foi genial, Pablo.

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  4. Dr. Pablo ... quanto mais tempo se passa, mais inteligente vc fica!
    Você é um gênio! Essa é boa demais! Saudades de ti.

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