Pablo de Carvalho

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Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sábado, 18 de março de 2017

CACHORRO AQUI VIVE MELHOR QUE GENTE - CRÔNICA POLICIAL

- Atento, equipe de homicídios?
- Prossiga...
- Duplo homicídio no Engenho Lua Cheia...
- Duplo?
- Sim...
- A caminho...
E lá vai a viatura pela pista, embalada debaixo de sol e cercada de monoculturas: cana, homicídio, narcotráfico etc.
- Ô, minino!
Polícia, pra saber das coisas, é melhor perguntar a menino; adulto mente que é uma desgraça!
- Sinhô?!
- Onde fica o Engelho Lua Cheia?
- O sinhô quebra às isquerda pela predeira e já dá com ele...
- Obrigado!
- De nada!
Chegando, descemos, eretos e imponentes em passos oficiais, e fomos ver os corpos.
Um deles estava no lado de fora da casa de vila, pelo oitão direito, em posição fetal, com uma profundíssima lesão no pescoço. Por ele, todos carpiam:
- Ou outro é bandido, dotô; mas esse aí é inocente! Ai, meu Deus, morreu de graça!
O chão do distrito era sujo de coisas plásticas sortidas; as casas, miseráveis. Interessante: os cães eram limpos e sadios! Cachorro, aqui, vive melhor que gente.
- Revirem o corpo.
A rigidez cadavérica fez a vítima virar-se em estátua, e quando a parte de seu rosto que estava por debaixo do antebraço veio à luz, paralisada numa expressão de pavor, foi um chororô sem tamanho.
- Esse era trabalhador; batia enxada no roçado comigo! Coitado; morreu de graça!
Um velho albino de camisa aberta, chapéu roto e calças amarradas por um barbante, pegou uma lata de Pitu, deu uma golada e verteu uma lágrima.
Cachorro aqui vive melhor que gente.
Choravam as crianças, reunidas como em ciranda.
As mulheres choravam nos ombros umas das outras.
Os homens choravam e rangiam dentes.
- Morreu inocente! Aquele caba safado; digo nada! Mas esse aí...
As velhas choravam em oração.
Um gato passou, preguiçoso, fabricando silêncio, evitando cautelosamente pisar em sangue.
Gato também vive melhor que gente aqui.
- Rasguem a camisa dele. Alguma lesão? Tiros?
- Não senhor. Só uma facada apenas, no lado esquerdo do pescoço. Sangrou a até morrer.
Chega um investigador, faz um sinal. Debaixo de uma jaqueira afastada, diz:
- Foram cinco. Estouraram a porta, mataram o que está dentro da casa a facadas e vieram com esse pra fora. Esse aí, que todos dizem ser inocente, foi trazido fora pra apontar a casa ao lado, onde estariam três bandidos amigos daquele por quem ninguém chora, que eles também iriam matar. Depois que ele apontou a casa, o matador deu-lhe a facada no pescoço e foi pegar os outros três, mas eles ouviram a zoada e deram o pinote...
- E o que está dentro da casa?
- Morreu sentado. Também de facadas. Arrancaram a orelha dele...
- Vamos lá...
(Imagino a facada no pescoço do inocente, depois da informação dada, e ele estrebuchando, o sangue em bicas, os olhos atônitos vendo pernas se afastarem, a princípio nítidas, depois embaçadas; depois...)
Deram umas dez facadas no abdome do outro, e no tórax. Ele morreu sentado no canto da parede, para tomar lição e deixar de roubar. Ao lado do corte de cabelo moicano, de crista oxigenada, havia um buraquinho de nada, que sobrou da orelha, cuidadosamente extraída, em um corte perfeito, dada por mão controlada e sem nojinho de nada: quem mandou não ouvir conselho!
Na sala, um cachorro dormia, de barriguinha cheia.
A casa é miserável, mas o chão é bem friinho!
Cachorro aqui vive melhor que gente.












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