Pablo de Carvalho

Minha foto
Recife, Pernambuco, Brazil
Escritor (romancista), compositor, cronista e delegado de polícia. Vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana, publicado, no mesmo ano, pela Universidade Federal de Alagoas. Vencedor regional e nacional do programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras, lançado no Rio de Janeiro, em novembro de 2012. Escreveu, também, a novela O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras (Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Mulher é bicho complicado...



Tudo começou com a mesa da sala. Compramos uma mesa branca na Tok & Stok, que ela escolheu. Essa mesa começou a descascar. Fomos trocá-la, depois de muito trabalho, de uma péssima assistência da garantia.
- Vê essa (disse eu): é bonita, é de madeira de verdade.
- Será mesmo madeira, amor?
- Bem, se não for, é madeira em tese, porque não há quem diga...
- Gostei dela. Vamos trocar.
Tocamos. Recebemos. Montamos.
No começo, tudo bem. Mas, do nada, ela falou:
- Essa mesa... Não sei não...
- Que foi?
- Nada...
Um dia, enquanto a gente jantava:
- Essas cadeiras são desconfortáveis... Estão empenando...
- Não estão. Veja só: estão normais.
- Então tá...
Sábado à noite, tomávamos um chopinho na varanda, e ela, do nada, mudou de conversa e, com cara de desprezo, olhou lá pra dentro e resmungou:
- Eu odeio essa mesa. Quando a gente se mudar, ela não vai de jeito nenhum!
- Eu gosto dela.
- Eu detesto.
Nunca esqueci aquela cara de desgosto. Profunda, sincera, atravessada. Coitada da mesa!
Um dia, chego do trabalho e ela fala:
- Mô, a geladeira quebrou. Tá aqui o orçamento: quase o preço de uma nova!
- Vamos comprar outra. É o jeito!
Dia seguinte, fomos à loja.
- Mô, veja essa: toda inox, preço bom, tem até um filtro na porta. Vê o congelador: uma fabriquinha de gelo pra você fazer seu cuba-libre...
- Ok. É bacana mesmo. Vamos levar.
Depois de uns meses, entro na cozinha e ela está olhando pra geladeira, fixa, pensativa, braços cruzados, mão no queixo.
Sussurrou, lastimou baixinho:
- Tem um amasso aqui... Acho que ela ficou muito perto da pia.
- Depois se ajeita...
- Ficará como original?
- Acho que sim.
- Tudo bem (disse isso vagamente, e deu de ombros).
Na semana seguinte, ela me chama:
- Mô, vem ver uma coisa...
- O quê?
- Os cantinhos estão enferrujando...
- Ôxe, e não era inox?
Ela passou as unhas pelas brechas, catou uma lasquinha de ferrugem quase invisível, esfregou-a nas pontas dos dedos e fez aquela mesmíssima cara, aquela expressão medonha que já começava a me apavorar.
- Melhor, na mudança, trocar ela também... Tô começando a...
- Nem pense... Avimaria, muita despesa!
- Tá bem. Mas, se der... Vou juntar uma grana...

Depois, num domingo à tarde, deitei-me na rede da varanda, abri um livro e afundei na leitura. De repente, olho pra esquerda e ela está no sofá, comendo tangerina e me olhando fixamente. Descascava a tangerina sem nem olhar pra ela. E me olhava, paralisada, atenta, arrancando a casca da fruta, mastigando os gomos me-ca-ni-ca-men-te. Tremi dos pés à cabeça. Perguntei:
- Que foi?
Ela sorriu, mandou um beijinho e disse:
- Tá na vidinha que pediu a Deus, hein, amorzinho...
- Ufa!...
- Como?
- Nada não...

4 comentários:

  1. Dessa vez, só tenho uma coisa a dizer:
    KKKKKKKKKKK...
    A minha é quase igualzinha!
    E quem tiver uma diferente, que se insurja.
    Ps. Ainda bem que não espero me mudar nunca, senão...

    ResponderExcluir
  2. CASIMIRO ULISSES DE OLIVEIRA E SILVA29 de setembro de 2012 às 03:17

    Meu caro e admirado cronista. Você tem razão: "mulher é mesmo bicho complicado". Todavia, há algumas coisas que - tenho certeza você sabe mais do que eu - são sempre muito complicadas. Vamos fazer o paralelo entre o objeto de sua crônica e algumas frutas. Por exemplo, você já esperimentou descascar uma jaca e arrancar-lhe os bagos para comer? É muito complicado. Todavia, desconheço fruta mais saborosa! E quanto à laranja? veja que trbalheira é chupar uma: você tem até que se armar de uma faca-peixeira para descascá-la, se é que quer mesmo saboreá-la. E o que dizer daquelas vezes em que você não dispõe de uma faca e constata que acabou de cortar suas unhas? Aí fica tudo mais complicado. No final, todavia, tudo é gostosura! Você já comeu babaçu? Experimenta descascar um. É ainda mais complicado do que todas as outras frutas a que fiz menção. Mas no final, seu bago, associado a um pedaço de rapadura é incomparávelment mais gostoso do que qualquer iguaria dessas que comemos em restaurantes de luxo. Então, ante todos esses humildes paralelos, constato com alegria que poucas são as frutas fáceis de se descascar, mas que podem ser consideradas tão boas quanto aquelas que apresentam maior grau de dificuldade. Excetuo a banana e a tangerina que a mulher de sua crônica descascava, as quais, não obstnte de fácil descasque, ainda assim não perdem sua excelente qualidade. Falta-lhes, porém, o principal: falta-lhes o ritual, falta-lhes as complicações que facilitam a vida e a tornam mais vivível e mais palatável. Por isso, meu caríssimo cronista, permito-me cocluir, concordando com você quanto ao fato de que "mulher é bicho complicado". Posso dizer isso de cátegra, porque tenho um exemplar dentro de casa com quem vivo há quase meio século (imagine você o que e quanto já tive de aguentar!). Descascá-la (no bom sentido, é claro), é, talvez, a tarefa mais difícil de minha vida. Conquanto difícil, não consigo viver sem ela. Demais de tudo isso, caro amigo, sugiro que, a título de adquirir experiência, entre num rozeiral para colher rosas. Se o fizer, verá quão complicada é a tarefa de colher a rainha das flores. Ao final, todavia, quando seu cesto estiver cheio delas, será o mais belo de todos os objetos. Colha-as, então, mesmo diante das tabtas complicações que a colheita lhe impõe; depois, leva-as para casa e entrega-as ao "bicho complicado". Logo, você constatara que não há melhor descomplicador a ser prescrito para esse ser que segundo o cronista "é muto complicado". Dizem os especialistas que as rosas curam até as mazelas provenientes da gramática: os problemas de regras difíceis; alguns outros exageram, afirmando categoricamente que elas curam até as esquisitices da menopausa. E o que é pior, caro cronista, (ou o melhor?) é que mesmo quando os dentes já não existam e quando outras funções já estejam fora de uso há muito tempo, ainda assim enchemos a boca de saliva ao singelo gesto de olher para as frutas complicadas, de que tanto gostamos, mas que o calendário, implacável e perverso, termina por nos proibir, como se estivéssemos acometidos de uma gigantesca gasrite, que nos desaconselha do prazer de comer tudo quanto gostamos. Pelo tanto que já escrevi, até abusando de seu espaço, termino com uma recomendação para os "bichos complicasod": que continuem sendo cada vez mais complicados, porque, mesmo assim, são e continuarão sendo, "ad infinitum", o melhor dos frutos que NOSSO CRIADOR nos legou. Abraço forte para você e minha homenagem aos "bichos complicados". Casimiro.

    ResponderExcluir
  3. É simples, ou compra um BANCO, ou deixe a mulher, trocar não adianta. Dessa forma você retoma a sua calma.

    Fábio Moura

    ResponderExcluir
  4. Adorei o q meu marido escreveu, VOU COMPRAR TUDOOOOOO!!!!!!!!!!

    Cristianne Brown.

    ResponderExcluir